O rosto

Ouço aquele prelúdio número 4 do Chopin.
Chegou na manhã do último dia do ano mais uma triste notícia: desapareceu Stephen Stoer, uma das pessoas mais queridas, entre alunos e professores, da Universidade do Porto. Felizmente, para os que como eu tiveram o previlégio de o conhecer, resta a certeza de que haverá sempre algo dele para recordar, para além do impacto da obra: a inquietação de quem questiona o inquestionável, sem deixar de arregaçar as mangas e pôr mãos à obra, e a combinação irresistível de um sorriso doce com um olhar deslumbrado pelo mundo.

Resoluções para o novo ano (1): baixar as expectativas


O encerramento do Nun'Álvares, exactamente 110 anos depois da primeira projecção de um filme pelos irmãos Lumiére, encheu-me de uma profunda tristeza. Tenho recebido vários sinais de que este vai ser um início de ano melancólico.

Post Zen

Em estado zen, desisto de escrever para comentar o último filme do Tim Burton. A única coisa que me ocorria é a de que precisava de falar sobre a morte, e não me conseguia descentrar da associação livre que fiz com a Morte em Veneza e daquele post que deixei de lado, em que tencionava falar sobre a falsa questão da impossibilidade da adaptação de um bom livro ao cinema, em que concluia sobre a importância, em ambos os meios, de utilizar a inteligência e o génio (a propósito da qualidade de ambas as versões, a literária, do Thomas Mann e a cinematográfica, do Lucchino Visconti). Apercebi-me então que precisava de mar (às vezes acontece-me precisar de mar). Arrumei as trouxas e rumei à Fnac para procurar uma versão baratinha de La Mer, de Claude Debussy, uma das peças que me ronda na cabeça desde a pilhagem à colecção de vinis dos pais dos meus amigos do liceu (este mar já me assalta o pensamento, portanto, há já quase uns quinze anos). Depois de me desembaraçar da cidade, abanquei em frente ao mar e pus-me a pasmar. O mestrado ficou arrumado na pasta, mas não obstante senti-me mais sábio.

A quoi ça sert le Noel


Depois de um fim de semana na serra, daqueles em que imaginamos lobos e fadas lá fora com igual dose de probabilidade, em que nos aquecemos com uma lareira paciente e com um Porto sempre na mão, e em que nos entrosamos de mergulho com a família do marido tentando não esquecer que deixamos outra família na cidade, regresso ao computador com um mood melancólico (a semana está por minha conta, posso dar-me a esse luxo). A culpa é em grande parte da audição matinal de Ascent, o último do Bernardo Sassetti e de uma canção do Steven Brown que eu redescobri, e cujo título é toda uma declaração de intenções: "A quoi ça sert l'amour" (não é uma interrogação, é uma introdução a que se seguem dois pontos e uma enumeração de funcionalidades do dito).

Em directo

O meu primeiro post feito no local de trabalho: sexta-feira, véspera de Natal. Nenhuma alma à vista. Hoje não há desempregados, nem mulheres solitárias ou maltratadas, nem adultos com pouca escolaridade a precisar do nono ano, nem idosos, nem funcionários da câmara a meter cunhas por fulano ou sicrano, nem assistentes sociais e fazer pela vida... dos outros. Ligo as colunas. Deixaram-me duas pérolas: Spandau Ballet e Rod Stewart. Pasmo hipnotizado por instantes para os efeitos elicoidais do windows media player. Faço pela vida. Mergulho numa base de dados e arrumo as papeladas, mas parecem-me aqueles gestos vazios de uma empregada de pronto-a-vestir sem ninguém para atender. Imagino o fundo de uma piscina. Apetece-me fundir com os ladrilhos azuis e com as bolhas que faço debaixo de água, enfiado debaixo de uma touca que me dá aquele ar tão pateta.
"This is the time of your live".

A melena do Robert Plant


Enquanto tento sobreviver ao bruá devorador do solstício, relembro, a vasculhar fotos antigas, de uma antiga ambição: a de ficar com o cabelo parecido com o do Robert Plant. Durante esse período, eu ficava enfeitiçado, de headphones na cabeça, sozinho no silêncio das quatro da madrugada (ai vida de estudante, porque te foste?) a ouvir aquela voz poderosa, imaginando os movimentos elegantes daquela melena dourada através das fotos estáticas dos gigantes vinis. Os Led Zeppelin para mim eram uma espécie de contraponto físico à minha pulsão mais cerebral da adolescência. Ajudaram-me a atravessar o deserto e eu, ingrato, ainda não actualizei a colecção para CD.

(aviso à navegação: pode fazer recordar episódios menos felizes da vida de muito boa gente)

Urbanimagem


Imaginem um dia de Inverno, daqueles em que a luz do Sol é toda uma experiência. Imaginem depois uma cidade, atravessada por um rio e com a linha marítima no horizonte. Imaginem ainda um vulto rápido a descrever curvas por entre os carros e a trepar ruas estreitas e íngremes. No topo do vulto, um corpo, no topo do corpo uma caixa e por dentro da caixa uma cabeça. Dentro da cabeça, uma música de Patti Smith: Gloria.

O hábito faz o monstro


A família, dizia há dias conversando com uma amiga, é um lugar viciado, fruto de uma convivência e co-habitação diária, uma experiência forçada, frequentemente repleta de silêncios e mal-entendidos. É importante ganhar distância para que os silêncios adquiram significado, mas isso nem sempre é possível e nem é líquido que resulte numa reaproximação. Nesses intervalos (por vezes infinitos), podem ser importantes factores de disrupção que introduzam pequenas crises, em relação às quais os elementos se possam reorganizar e tomar partido. Frequentemente é isso que acontece com o desaparecimento de alguém, mas também com a apresentação de um namorado ou amigo, alguém de fora que mergulha no silêncio e o faz falar, porque todas as famílias se desejam reelaborar como espaços de acolhimento. E de repente, por arrasto, o milagre da comunicação acontece. Ou não.

PS: o título do post é roubado aos Rádio Macau.

Message personnel

(...)
Si tu crois un jour que tu m'aimes
Et si ce jour-là tu as de la peine
A trouver où tous ces chemins te mènent
Viens me retrouver
Si le dégoût de la vie vient en toi
Si la paresse de la vie
S'installe en toi
Pense à moi
Pense à moi

Mais si tu crois un jour que tu m'aimes
Ne le considère pas comme un problème
Et cours, cours jusqu'à perdre haleine
Viens me retrouver
Si tu crois un jour que tu m'aimes
N'attends pas un jour, pas une semaine
Car tu ne sais pas où la vie t'emmène
Viens me retrouver
Si le dégoût de la vie vient en toi
Si la paresse de la vie
S'installe en toi
Pense à moi
Pense à moi.
(...)

Hoje a Françoise Hardy fez-me companhia enquanto trabalhava ;)

Correspondência ninana


Ao contrário da fruta, as prendas sabem melhor servidas fora de época.
Imagem: ricochete artístico de Major Tom e R.Gonk

Movimentos da poesia


A única coisa boa do Natal é termos um pretexto para oferecer boa poesia. Assim como assim, podemos aguentar o frete e o bacalhau cozido, porque sabemos que ao fim da noite, a 365 dias do próximo pesadelo, nos esperam as palavras e os filmes do Miguel. Já nas bancas dignas desse nome.

Le temps qui reste


Mais um filme imperdível. Vi ontem à noite mas o meu estado de espírito continua influenciado pelo jorrar de emoções a que somos confrontados.
Não sei se já há data prevista de estreia nos cinemas portugueses.
Em cada filme que faz, o François Ozon vai ganhando pontos no top dos meus realizadores preferidos.


Aviso à navegação: imperdível o novo trabalho do Jim Jarmush. Contudo, preparem-se para uma crise de melancolia existencial, servida com um sorriso na boca e um aperto no estômago. Alguém falou em amor? A banda sonora devia incluir "Everybody's gotta learn sometimes".

Apelos da natureza



Enquanto não surge a oportunidade de sairmos da cidade por uns dias e darmos uma saltada ao campo (Alentejo?), vou lendo o blog de um casal que decidiu vender o seu apartamento na Grande Lisboa e mudou-se para uma casa com quintal, em pleno Ribatejo rural. Algum dia farei o mesmo?

Parole

Venus - Olha p'ráquilo, tão a esburacar tudo.
Major - Foi óptimo termos decidido sair dali, foi mesmo a tempo. Nesta altura íamos estar loucos com a barulheira, já viste?
V - Não foi coincidência, eu disse logo que nunca compraria nada naquele prédio.
M - És tão inteligente!
V - Então não te lembras ter ido ver à Câmara o Plano Director Municipal?
M - É verdade! Então eu também sou um bocadinho inteligente!
V - A diferença é que te esqueces das coisas...
M - É uma inteligência efémera!

A solidão do trio

Não, não vou falar de novos modelos familiares, apenas de um concerto com que fomos supreeendidos ontem à noite nos cada vez mais agitados Maus Hábitos (já viram aquela agenda mensal?). Jazz, na sala de concertos e dança, parecia uma oferta irrecusável. Começou tarde e a más horas, para fazer juz ao nome da casa, mas em compensação a multidão enchia todos os recantos... menos o da sala de concertos, onde meia dúzia de gatos pingados (raio de expressão) tiveram o previlégio de assistir àquela perfomance, que tem tanto de intelectual como de física, saindo enlevados pelo som cru e imaginativo de um contrabaixo, uma bateria e uma guitarra (a de Miguel Martins, que liderou a formação). A multidão, essa aguardava o fim do concerto, para entregar passivamente o ouvido às batidas fáceis do electro-disco (não tenho nada contra, pelo contrário, mas... com tanto intelecto reunido, não seria de esperar uma melhor recepção à diversidade?).

Correspondência LGBT

E isto é um excerto de uma resposta minha às inúmeras cartas de desprezo pelo trabalho associativo, geralmente fruto de homofobias internalizadas, que recebia enquanto colaborador de um grupo LGBT há uns anos atrás:

Julgo compreender a frustração e revolta de quem não se sente representado por organizações que se assumem como porta-voz de uma vontade comum. Contudo, compreendo-o apenas até ao ponto em que essa revolta se alimenta de um silêncio passivo. Acho que as associações só podem sobreviver (partindo do pressuposto, que partilho, de que elas devem existir) se se constituírem como catalisadoras de múltiplas vontades numa direcção comum que não destrua, antes deixe a descoberto essa multiplicidade (...) Aqui refiro-me a tudo o que possa caber nesse vago entendimento do que é ser gay, seja ele o mundo ‘podre’ (a expressão é sua, ainda que ressalvada mas não redimida pelas aspas), o ‘clean’ ou outro qualquer. Não sei de que lado estão os juizes da moral. Talvez o sejamos todos, mas não me parece que partir da nossa própria percepção individual do mundo para julgar como mau ou bom o que nos rodeia seja um bom princípio (...) O género é uma construção social e como tal pode ser apreendido e socializado por qualquer pessoa. Para além do mais, não nos podemos esquecer que existem actualmente muitas situações infantis de carência gritante (eu sei-o por contacto profissional diário) que poderiam ser resolvidas muito simplesmente pela adopção por parte de casais estabelecidos e motivados, já para não falar das muitas situações que já existem e que deixam a criança sem qualquer tipo de enquadramento legal e, como tal, desprotegidas. É como tal, pelo próprio interesse da criança (argumento arvorado pelos detractores), que se reivindica este direito (da adopção por casais homossexuais) (...) Enquanto cidadão espero poder dar o meu contributo para que outros não passem pelo silenciamento e violência, simbólica e física, que fomos obrigados a suportar durante demasiado tempo. Não se trata de uma birra exuberante, esquerdista ou pequeno burguesa. Milhares de homossexuais foram enviados para campos de concentração e coisas semelhantes acontecem nos dias de hoje longe dos nossos olhos tranquilizados.
Eu trabalho para que Wilde não seja lembrado apenas como um excelente autor do século XIX mas também como uma vítima do pior que o ser humano consegue produzir, como o reflexo hediondo da pintura no final da história.
Para fundamentar melhor a sua resposta (que fico a aguardar) aconselho a prestar atenção às actividades que as associações, que tanto parece desprezar, têm levado a cabo, voluntariamente, nos últimos tempos: ciclos de cinema, debates, exposições, publicações, acções nas escolas e (sim!) festas, e não apenas ao discurso simplista e redutor dos media.
Quanto à educação sexual nas escolas confesso que não compreendo a sua reactividade. Estamos a dizer que é preferível manter os jovens na ignorância, fechados nesse mundo de sombras e angústias que são os preconceitos? Acaso ficou com a ideia que pretendemos mostrar filmes pornográficos e como ter boa performance na cama? Na experiência que já tive com adolescentes, trata-se simplesmente de procurar responder a questões tão simples e pueris como: o que é um homossexual e porque é que isso é uma coisa esquisita para a sociedade. Ou de tentar transmitir uma ideia positiva da diversidade. A escola pública não é neutra!! Não sejamos ingénuos. Não se trata de paranóia, mas sim de constatar como se constrói a ideologia, desde a primeira infância, da sociedade como um espaço com coisas ‘normais’ e naturais’ e coisas desviantes e aberrantes. Concordo com a arte como espaço pedagógico privilegiado mas não a quero identificar com o cliché banal (ideologia, mais uma vez) do gay com veia criativa e sensível.
A decadência é um ponto de vista. A cidadania um acto de construção participada.


PS: esta é a segunda versão do post, a primeira vinha com um cabeçalho incorrecto que enviesava a leitura. Penso que assim se percebe melhor (obrigado veado_)

Falta pouco!

Vá lá, quem ainda não assinou a petição toca a apressar-se. O objectivo das 4000 assinaturas está quase a ser atingido!! Vejam aqui.

Num instante


Em poucos segundos fiz uma compra para o Natal! Ora vejam as belas fotografias que este site tem e a preços para malta "tesa" como eu!

Vida de BD


Embora nunca tenha sido um verdadeiro fã (nesta como noutras coisas sou desprovido de espírito obsessivo, compulsivo ou competitivo), sempre admirei a banda-desenhada como forma de expressão riquíssima e com identidade própria. Ainda para mais é uma arte desprezada, o que aumenta para os meus olhos o seu encanto. Em tempos, o Mercado Ferreira Borges era lugar de encontro para um mágico salão internacional de BD. Este ano, os cartazes levaram-me a induzir que o salão tinha voltado ao pavilhão de metal vermelho. Descobri depois que se tratava de uma edição virtual, magnificamente concebida, mas virtual. Ainda assim, oportunidade para relembrar esta paixão. E de escolher, da explosiva diversidade e qualidade dos autores referidos, aquelas pranchas que por algum motivo me tocam nalgum lado. Como estas, do James Kochalka, que divagam com uma economia espantosa sobre as pequenas perplexidades da sua própria vida passada ao papel.

Little Joe


Entrou numa música do Lou Reed...

Little Joe never once gave it away/ everyone had to pay and payed / a hussle here and a hussle there / New York city is the place where / they said, hey babe, take a walk on the wild side / hey Joe, take a walk on the wild side

... mas já depois de Andy Warhol o ter descoberto e o ter transformado numa estrela maior da sua Factory. Nos anos oitenta fez do torso dele capa de um disco dos Smiths.
Ladies and gentlemen: Joe Dalessandro. Queriam uma musa para esta semana de trabalho?

Febre lusitana


E de repente, aos trinta, ouço uma música da Madonna sem preconceitos (sim, a tal com o sample dos Abba, que me faz pensar em maneiras subtis de açambarcar a colecção de vinis dos meus pais). Será já a crise da meia idade? E de uma acentada, uma outra estreia: uma noite divertida no bonito e agitado Café Lusitano, onde pude pôr em prática as minhas recém adquiridas novas competências de assertividade em bares e pistas de dança (penso que estabeleci um novo record pessoal com aquele whiskey com cola).

Fantasia

Há músicas que teimam em não nos sair da cabeça. Outras são assim como que uma espécie de farol.

Fantasia

E se, de repente
A gente não sentisse
A dor que a gente finge
E sente
Se, de repente
A gente distraísse
O ferro do suplício
Ao som de uma canção
Então, eu te convidaria
Pra uma fantasia
Do meu violão

Canta, canta uma esperança
Canta, canta uma alegria
Canta mais
Revirando a noite
Revelando o dia
Noite e dia, noite e dia
Canta a canção do homem
Canta a canção da vida
Canta mais
Trabalhando a terra
Entornando o vinho
Canta, canta, canta, canta
Canta a canção do gozo
Canta a canção da graça
Canta mais
Preparando a tinta
Enfeitando a praça
Canta, canta, canta, canta
Canta a canção de glória
Canta a santa melodia
Canta mais
Revirando a noite
Revelando o dia
Noite e dia, noite e dia


Chico Buarque de Holanda

Rescaldo da tertúlia

Até estava hesitante em postar porque ando infeitiçado com a imagem do Pierre e Gilles do post anterior, mas não resisti a passar por aqui só para dizer que a tertúlia foi muito produtiva e participada (duvido que as próprias assembleias da Câmara alguma vez tenham visto tanta audiência). Estiveram, como pretendíamos, estudantes, professores, pais e encarregados de educação, funcionários de escolas, especialistas e curiosos, ou seja, um pedacinho de toda a comunidade escolar, que assim demonstrou que este é um tema que todos querem debater, mesmo num feriado cinzento e chuvoso como este. A Gabriela esteve igual a si própria e o Júlio, inspiradíssimo, recebeu com visível satisfação o merecidíssimo Prémio Arco-Íris. Marcamos já a próxima?

Conversas fora do armário


imagem de Pierre e Gilles

É pró menino e prá menina, prá mãezinha e pró paizinho, pró professor e professora... e pra quem mais lá quiser estar. Amanhã, às 16h30, no Auditório da Assembleia Municipal de Vila Nova de Gaia, tertúlia sobre Educação Sexual e questões LGBT, com a Gabriela Moita e o Júlio Machado Vaz, que este ano recebe o Prémio Arco-Íris da ILGA. A iniciativa é uma cortesia do GRIP.

Um belo exemplar!


As primeiras 50 páginas deste livro são muito positivas, mesmo muito positivas! Já fazia algum tempo que não me sentia tão bem acolhido pelas personagens de um livro. Parabéns Cunningham!

(re)Visto


The Maltese Falcon, do John Huston, que também assina o argumento, e com o Humphrey Bogart, o actor menos sexy mas com mais charme de todo o género do policial negro (chamado assim porque a acção se passava invariavelmente à noite, com um elaborado e quase expressionista jogo de sombras e luzes ténuas, que pareciam esconder mais do enredo do que os próprios protagonistas). Ainda não consigo perceber porque me continuam a fascinar estes filmes. São politicamente incorrectos, toda a gente fuma desalmadamente (é quase uma regra sine qua non do género). Os plots são machistas e misóginos: as mulheres ou são meros títeres, frágeis e submissas, ou então, claro, as más da fita. Nunca, sobretudo com Bogart ou Mitchum à mistura, parecem existir sentimentos genuínos, estes estão sempre subjugados por outros interesses (quase invariavelmente, interesse por dinheiro). E, contudo, dir-se-iam filmes subversivos e livres, sobretudo se pensarmos que aquela era a época da repressão de MacCarthy (contra o qual marcharam Bogart e a mulher, Bacall) e do famoso Código Hays. Talvez nunca mais olhemos para o cinismo da mesma forma, como expressão artística de uma malaise social.

Do bloco - III

Como qualquer adolescente, a incapacidade de traduzir pela linguagem corrente toda a turbulência do crescimento levou-me a ir colecionando pequenos blocos onde tentava agarrar pensamentos de passagem, com imagens ou pequenos textos. Hoje apercebo-me como esses blocos foram importantes na reconstrução e definição de quem sou hoje e são um retrato para mim interessante desse período tão cheio fantasmos e projectos, tão emocionalmente avassalador. Recolho alguns exemplos escritos, avulsos e sem data.

Descendo de mim mesmo
e verto-me no futuro
já não é a esperança o meu alimento

O abismo era o tempo que me separava do amor

Não quero estar no meu corpo, na minha vida.
Visto os dias com a luz do medo.
O mundo é uma viagem que nos percorre
como se fosse escuro lá fora.
Sou um corpo que procura o horizonte onde me deixei ficar.

Na caverna dos segredos
sobrevive uma vontade,
única e silenciosa

Não me chegam os dias para o que preciso de ser

Às vezes penso que só a vertigem é pensamento

temos a verdade nos olhos
e o medo afogado no mar da razão
vagueamos pelas ruas
cobrimos os dias de espanto
e rompemos a lei por um despertar

Brincando ao planeamento

Por muitas vezes que o faça, acaba sempre por ser uma experiência radicalmente diferente. Ocasionalmente, convidam-me para dinamizar sessões sobre sexualidade no local onde trabalho. Os participantes, geralmente mulheres, são convidados antecipadamente a deixarem as suas questões anonimamente num qualquer recipiente, por isso quando vou para a coisa já sei mais ou menos o que me espera. No início todos estão numa pose hirta e desconfortável. A minha tarefa é descongelar o ambiente para que ninguém trema quando disser orgasmo, vagina, masturbação ou lésbica. Pensando bem, essa é a tarefa toda, tendo em conta que a audiência é composta às vezes por mulheres que foram agora à primeira consulta de ginecologia da sua vida (uma até desmaiou quando o médico entrou no consultório onde ela já estava de peito descoberto) ou que pensam que a "monopausa" é uma doença e a homossexualidade uma espécie de maldição repelente. Contas feitas, saímos de lá todos amigos e distribui-se o material que se consegue arranjar, mas fico sempre com a sensação que quando chegarem a casa vão guardar aquela sessão só para si, como se tivessemos partilhado um grande segredo colectivo. Talvez seja já uma conquista.

Jornadas Rennie

Dias repletos são dias sem qualidade de digestão. Então hoje foi acordar, o que já é nos tempos que correm uma tarefa esgotante, preparar as trouxas, dar duas de letras à D. Fátima, a super-mulher a dias que opera o verdadeiro milagre da transformação, ir a correr para o trabalho, hoje sim, com a estreia internacional da Vespinha, mas ainda nem mal tinha assentado o pequeno-almoço no estômago quando o telemóvel desata a tocar desenfreadamente, parecia que a ICAR tinha feito das suas e a RTP queria a opinião de uma associação LGBT, o que me fez voar para os estúdios onde, com a tensão, nem percebi como correu a entrevista, contudo, de regresso almoço no trabalho e quando apareço no pequeno ecrã é tal a festa que ninguém quer saber qual é o assunto, aproveito para uma escapadela a casa, mas sou atropelado por uma condómina que me quer falar da torneira de não sei onde e pagar as contribuições de não sei quem e que me obriga a ser indelicado e passar o compromisso para outro dia, uma vez que tinha que regressar ao trabalho e adiantar mais processos, esses que se acumulam nas prateleiras e não nos deixam continuar a fazer a digestão em condições, mesmo sabendo que no final tinha que sair para ir preparar uma sessão sobre sexualidade antes de ir buscar as sobrinhas à ginástica e ir jantar com a família, adeus até à proxima semana, para depois regressar ao lar e finalmente rever os mails e adormecer em cima de um calhamaço sobre o poder da identidade na era da informação, porque assim como assim o mestrado não pode ficar de lado, mas faz-me ficar furioso porque no dia seguinte apercebo-me que não tenho tido nem dado mimo que chegue, esse que me recarrega as baterias para outra jornada Rennie.

A trágica epistemologia do homem-urso


Um homem isola-se durante 13 períodos estivais no coração de uma paisagem selvagem e inóspita, a que chama o santuário dos ursos, apenas com uma tenda de campismo e os recursos básicos necessários. Mas não são uns ursos quaisquer. Trata-te dos grizzly, conhecidos pela sua agressividade e natureza indómita. Ainda assim, decide desafiar todas as convenções e aventura-se num minúsculo acampamento sem armas, munido apenas de uma câmara de filmar, com a qual vai encetando monólogos no mínimo heterodoxos sobre o que observa mas também considerações mais pessoais. Werner Herzog, o fascinante cineasta que na sua extensa filmografia já nos presenteou com "Fitzcarraldo" ou "The dar glow of the mountains", conhecedor dos abismos e limites da alma humana e da sua nem sempre pacífica convivência com a natureza, apropria-se do material filmado por Timothy Treadwell, o homem que acabaria por perder a vida, juntamente com a namorada, devorado por um dos ursos que tanto idolatrava (existe um registo áudio da tragédia, que funciona como elemento narrativo de suspense mas ao qual somos felizmente poupados) e cria The Grizzly Man. De uma forma inteligente, Herzog vai dissecando o acontecimento, analisando documentos, datas, factos e entrevistando pessoas que conviveram com o malogrado explorador. Conclui que, muito para além do que um manifesto de defesa pelos ursos (que, como atesta um especialista da área, até possuem uma população estabilizada naquela zona e para mais habitam numa área protegida), contestado pelos próprios nativos, que sempre respeitaram a distância entre ursos e humanos, o projecto não era mais do que a desesperada luta de um homem à procura de sentidos na sua própria vida (conhecemos ao longo do filme o seu percurso prévio de expectativas não cumpridas, empregos desqualificados, frustrações e alcoolismo, sem uma única referência a estudos de biologia). O final parece sugerir uma espécie de imolação, como se o homem, no limite de uma ecologia pessoal, delirante e ingénua, se tivesse entregue finalmente não à sua desintegração, mas à sua mutação identitária: já não era um homem, mas um homem-urso, apenas mais um elemento natural daquela paisagem, a única a que chamava casa. Apesar das divergências com a missão de Treadwell (Herzog nunca acreditou num fundo 'humano', alla Disney, no reino animal) este belíssimo documentário resgata-o e devolve-lhe a possibilidade de um sentido.

A não-escola


No décimo ano, ainda mal sabia eu o que era a vida, fui convidado por dois colegas de turma para participar num projecto que eles tinham planeado para a semana cultural do liceu. Deram-nos uma sala e carta branca. O resultado foi algo próximo de um motim escolar. Vedamos o acesso à sala, forrámos todas as entradas de luz, e criámos uma espécie de labirinto de mesas e cadeiras empilhadas, por onde o visitante tinha que circular, espreitando aqui uns poemas urbano-depressivos, aqui umas críticas anti-capitalistas, acolá uma instalação feita com um televisor estragado, uma torneira e muitos sapatos colados ao longo do quadro e pelo tecto fora. Na altura apenas um de nós tinha uma aparelhagem, mas só tínhamos dois CD’s, que serviram de banda sonora à coisa: as alternativas eram Dead Can Dance ou Ella Fitzgerald com Louis Armstrong, cuja música ecoava em todo o pavilhão leste. À entrada, era oferecido aos visitante um pedaço de giz e um convite para escrever um comentário pessoal num local qualquer da sala. Foi um sucesso estrondoso, tanto entre alunos como entre os (poucos) corajosos professores que decidiram entrar. O evento marcou também o início de uma longa e visceral amizade, que resultou mais tarde em duas paixões platónicas que me deixaram esgotado. Lembrei-me de tudo isto ao visitar a panfletária intervenção de Thomas Hirschhorn no Museu de Serralves. Com todo o seu apelo tão cândido como pretensioso à revolução do papel da arte e da educação, a Anschool (‘não-escola’, o nome da exposição) chamou por mim de volta a esse lugar despudorado para onde viajei naquele pavilhão do liceu. É estranho ver agora esse lugar assim tão cristalizado e monitorizado, tão feito peça do regime.

Planeta Sigur Rós


Tenho que fazer isto mais vezes. Cedi ao impulso, e sem grande expectativa enfiei-me no Coliseu para aquele que viria a ser um concerto desconcertante (soa-me bem). Já ouvia Sigur Rós, mas em doses muito moderadas, por um lado porque me parecia que a casa se enchia de uma melancolia que se agarrava às paredes, mas também porque algum daquele som me parecia forçado e enjoativo. Ontem não senti nada disso, apenas o deslumbramento perante um verdadeiro OVNI auditivo, mas também visual (é inolvidável aquela figura esguia e curvada do vocalista, a esgrimir um arco contra uma grande guitarra). Ao entrar, ouvia-se já o som de um grupo de meninas no palco, que nos transportaram directamente para a oficina do Pai Natal com todos aqueles cabelos, saias sem cós e instrumentos de brincar. As fadas vieram depois ajudar na secção de cordas aos seus conterrâneos durante uma grande parte do show. E eu não conseguia deixar de olhar para o tecto da sala e imaginar que aqueles grandes círculos eram a parte de baixo de uma nave espacial que levantaria voo assim que terminasse o espectáculo, transportando aquela gente de volta para o planeta de onde vieram. Islândia? Takk.

Coisas da vida

Uma amiga queixou-se de que lendo a orquídea fica a saber o mesmo sobre as minhas andanças, porque me dá para lançar bitates sobre isto e sobre aquilo e não contar coisas da vida. Ora bem, cá vai um ponto de situação: depois das férias, regressei carregado de energia, mas para fazer tudo o que não tinha a ver com trabalho. A ver se me faço entender. Continuo a adorar a minha profissão, mas é difícil manter a chama da paixão acesa quando ela nos suga quase todas as nossas energias e nos regula autoritariamente o tempo. Nos interstícios, apenas tenho conseguido lamuriar-me sobre os trabalhos que não fiz para a faculdade, actividade em que perco mais tempo e energia do que necessitaria para realmente os produzir. Acabei de saber que consegui ficar com o orientador que tinha escolhido, e vou-me encontrar com ele na próxima segunda não com as mãos a abanar, mas encostadas à cabeça, em expressiva encenação de angústia que tenho ensaiado repetidas vezes ao espelho. O meu professor chama a isto diferir a ansiedade (que em português prosaico quer dizer arranjar desculpas esfarrapadas). Esta semana concretizei uma ideia já muito antiga, a de comprar uma Vespa. Simplesmente ando tão atarantado que ainda nem consegui andar com ela, apenas projectar um magnífico post em que ela vai iria aparecer em todo o seu esplendor. Aqui na Praceta, porque em Portugal o progresso continua a ser igual a vias rápidas, acabaram de abater a árvore mais magnífica de todo o quarteirão, quando no resto do mundo civilizado (expressão etnocêntrica, sem dúvida) não poupariam esforços para a salvaguardar da furiosa presença humana. Também tenho andado algo contemplativo, e talvez seja aqui que me tenha detido mais tempo, a radiografar este Outono. Os meus sogros chegaram. Tá na hora de ir fazer sala. A novela continua depois do intervalo.

Do bloco - II

A terminar, destaco ainda a intervenção final do dia, da autoria de Pedro Vasconcelos, sociólogo da casa que já conhecia de outras andanças do género (chegou a moderar um pequeno painel de que eu próprio fiz parte num encontro de sociologia sobre género e sexualidade). Com um pensamento complexo e evocando um turbilhão de argumentos em catadupa, procurou argumentar que assistimos actualmente a uma desinstitucionalização do casamento (a expressão é dele), através de uma elaborada dinâmica feita de rupturas, algumas mais subtis, outras mais visíveis, mas também composta de continuidades. O resultado é uma transformação desta realidade enquanto prática que se reproduz enquanto instituição, assumindo primazia neste processo a progressiva individualização a que assistimos neste momento da modernidade (tardia, reflexiva ou radical, consoante as perspectivas). Aparentemente, o que presenciamos é antes uma espécie de institucionalização do indivíduo enquanto entidade primordial em detrimento do colectivo, o que se coaduna com a tal concepção do direito moderno do casamento como junção de duas vontades. Tal parece traduzir-se numa mutação essencial de um tipo de casamento institucionalista para um modelo de casamento individualista, que se aproxima, nos seus fundamentos, daquilo que Giddens apelidou de relação pura (o que importa é o que cada um retira da união, e esta é válida enquanto o resultado do jogo quase hedonista entre os dois elementos é positivo e equilibrado, sendo os termos desse jogo permanentemente reavaliados e repropostos).
REF.: Transformações da Intimidade, de Anthony Giddens (1995). Oeiras: Celta.

As conclusões são assumidamente parciais e poderão não corresponder totalmente ao conteúdo das intervenções. Queria só tentar arrumar as minhas próprias ideias e digerir toda a informação, mas parece que o inevitável aconteceu: as ideias ficaram desarrumadas, e agora resta-me seguir o seu rumo. O que é óptimo sinal.

Seguiu-se Miguel Vale de Almeida, actualmente a desenvolver um trabalho de pesquisa comparativa precisamente sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, com trabalho de campo já desenvolvido na Catalunha. Começou por destacar a especificidade deste tipo de reivindicação, que parece assumir, aos olhos de muitos, um carácter não revolucionário, mas sim integracionista. Viajou então entre o conjunto de discursos pró e contra, agrupando alguns como conservadores, outros como progressistas e ainda como radicais, vincando que os mesmos podem emergir de contextos socialmente heterogéneos. Ressalvou também que o próprio discurso antropológico se encontra atravessado por formas de reprodução simbólica da matriz heterossexual e como tal deve ser ele próprio analisado criticamente. Finalizou com excertos deliciosos e eloquentes de testemunhos de casais entrevistados, recolhidos pouco antes de sair no país vizinho a lei que alargava o direito do casamento civil a toda a população. Este era de resto um autor que já adoptara um posicionamento sui generis no mapa das ciências sociais em Portugal, ao estudar práticas de sociabilidade masculina no Alentejo e ao envolver-se activa e publicamente na causa LGBT e noutras demandas da modernidade radical...
Ref.: poderão espreitar alguns textos em http://valedealmeida.no.sapo.pt/off.pdf

Actividades preferidas

Bisbilhotar casas abandonadas.

Após um almoço bem servido na cantina de Matemática, na companhia dos camaradas da ILGA e do próprio Borrillo, disponível e simpático para todos, regressamos à complicada arquitectura do ISCTE. Lígia Amâncio, autora com um longo percurso na área do género, relembra a contradição presente dentro da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento aparentemente assexuado, no registo do ser humano como entidade individual, com a excepção importantíssima e sintomática do artigo 16º, onde se fala do direito à união de um casal, aqui necessária e especificadamente um homem e uma mulher. Para Lígia, este exemplo constitui uma demonstração eloquente de como o casamento se apresenta ainda como o núcleo duro da ordem de género.
Logo depois, um empolgado e empolgante João de Pina Cabral, antropólogo de quem me lembro de ter lido uns textos, dissertou acerca da forma como o próprio discurso dos antropólogos contribuiu para uma leitura naturalizante do casamento, classificando os modelos não normativos (leia-se não ocidentais) como desvios ou desafios à funcionalidade social. No pós-guerra, inúmeros trabalhos de campo contribuem para um novo confronto com a alteridade, tal como no Renascimento, despoletando um processo de desnaturalização desta instituição, em paralelo com um processo concomitante de ‘estranhamento’ das culturas cujo regime de género e matrimonial se apresentava como distinto do quadro de referência europeu e norte-americano dos investigadores (a inflamada intervenção, enquadrável numa espécie de sociologia da antropologia, pareceu deixar o orador fisicamente esgotado).
Ref.: Aprender a ser Homem, de Lígia Amâncio (org.)(2004). Lisboa: Livros Horizonte

Amealhando algumas horas de trabalho extra e adiantando serviço de final da semana, consegui reunir condições para me deslocar a Lisboa, para aquele que prometia ser um momento importante de encontro de reflexão e de visibilidade sobre a reivindicação do casamento civil para pessoas do mesmo sexo. Num primeiro painel, a que já cheguei atrasado, tive o privilégio de assistir a uma desconcertante e desafiante apresentação de Daniel Borrillo sobre aquilo que entende ser uma “nova etapa da modernidade política e jurídica”. Com uma linguagem para mim nem sempre acessível (sempre tive dificuldade em penetrar no idioma jurídico) fez uma pequena resenha histórica acerca questões legais em torno do matrimónio, destacando a sua concepção perante o direito moderno como uma comunhão de vontades, passando então para a sua reivindicação por parte do movimento gay e lésbico. Destacou aqui a questão da SIDA enquanto fenómeno que despoletou a necessidade de um alargamento da protecção legal, em relação a questões como a propriedade comum ou mesmo a assistência ao parceiro enfermo. Para Borrillo, o que temos vindo a assistir em termos de descriminalização e de concessão de direitos para casais de pessoas do mesmo sexo é algo que se situa ainda no registo da tolerância, ao passo que o casamento se inscreve já no plano do reconhecimento pleno da igualdade e da legitimação da sexualidade, constituindo, como tal, uma radicalização da modernidade e despoletando muito maiores resistências. Tal como o movimento feminista, que provocou uma ruptura entre a sexualidade e a reprodução, o movimento gay e lésbico poderá implicar, no âmbito da homoparentalidade, uma nova ruptura, desta feita entre reprodução e filiação (existe a necessidade de reconhecimento de estatuto de filhos biológicos que não pode passar apenas pelo regime de adopção).
Ref.: Homofobia, de Daniel Borrillo (2001). Barcelona: Edicions Bellaterra

Homem ou mulher, eu amo quem quiser!

"O namoro entre duas alunas da Escola Secundária de António Sérgio, em Gaia, foi proibido por uma funcionária e abriu um conflito entre estudantes e docentes responsáveis. O caso até poderia passar despercebido se não fosse denunciado durante um debate, sobre homofobia, realizado, há dias, dentro da própria escola. (...)
Nunca se questionaram os namoros dentro da escola até agora. Os beijos e abraços não são proibidos no Regulamento Interno e trocar carinho não é faltar ao respeito". A frase, dita por Rita, membro da Associação de Estudantes, merece assentimento dos oito estudantes que foram formando uma roda à porta da escola. "Respeito é aceitar as opções sexuais de cada um", acrescenta Guilherme, líder do grupo por eleição.(...)
Nos rostos dos adolescentes nota-se desconforto, mal-estar. Mas a atitude é de coragem. Na hora de dizer os nomes, eles soltam-se das bocas sem receio. Rita, Guilherme, Alexandre, Luísa, Ana, Tiago, Jorge e Ana Luísa querem constar como na reportagem porque "defensores da liberdade de convicções".
"Ninguém gosta de ferir susceptibilidades. O que nos fere é saber que o amor entre duas alunas trouxe homofobia à escola. E ninguém pode dizer que o assunto era desconhecido. Antes da Associação de Estudantes saber, pelas próprias visadas, o que passava, o Conselho Executivo tinha falado sobre o caso, com as alunas, se bem que usando faltas como disfarce", diz Rita. (...)
"A nossa consciência ditou que não nos calássemos. A melhor forma de tratar o problema foi fazendo um debate. Houve autoritarismo da parte da funcionária que alega ter ficado chocada por ver as duas alunas aos beijos. Há, agora, autoritarismo ao proibir namoros dentro da escola e ao pôr professores a vigiar os alunos nos intervalos", afirma Guilherme. (...)"
JN, 08 de Outubro de 2005

Revoluções (?)

Paris, Maio de 1968


Paris, Novembro de 2005

Coisas que se explicam a si próprias


Uma idosa morreu em pleno lanche colectivo no centro de convívio, e no seu funeral apareceram os dez filhos que a abandonaram à sua sorte. Eu estava lá e vi.
Uma mulher desata a chorar desesperadamente numa entrevista, afirmando viver há cinco anos o pesadelo de um homem que a persegue a ela e ao marido, e que tem fama "desculpe lá, senhor doutor, de ser paneleiro". Eu estava lá e ouvi.
Num espaço novo mesmo em frente ao Douro e ao lado da Igreja de São Francisco, chamado Clube Literário do Porto, um jovem pianista de nome russo entrega-se a dois andamentos arrebatadores de Rachmaninov no piano-bar, em frente a meia dúzia de previlegiados que apenas se lembraram de lá aparecer para beber um copo e vasculhar as prateleiras. Eu estava lá e vivi.

Podem duas almas distintas partilhar casa e cama?

Cá vão os meus resultados, que nestes testes valem sempre o que valem. Admito que fiquei supreendido por me rever em boa medida nos resultados, mas sinto que isto é pouco distinto de que me leiam o horóscopo e acertem no que eu acabei de dizer por outras palavras.

trait snapshot:

clean, organized, regular, self reliant, tough, positive, high self control, very good at saving money, dislikes chaos, resolute, realist, trusting, hard working, dislikes unpredictability, prefers a technical specialized career, not worrying, respects authority, enjoys leadership, finisher, normal, optimistic, controlling, prudent, modest, adventurous, does not like to be alone, intellectual, likes the unknown, very practical, high self esteem, assertive, perfectionist, busy, altruistic

Advanced Global Personality Test Results
Extraversion |||||||||||| 46%
Stability |||||||||||||| 60%
Orderliness |||||||||||||||| 63%
Accommodation |||||| 23%
Interdependence |||||||||||||||||| 76%
Intellectual |||||||||||||||| 63%
Mystical |||||| 23%
Artistic |||||||||||| 43%
Religious || 10%
Hedonism |||||||||||| 50%
Materialism |||||||||||||| 56%
Narcissism |||| 16%
Adventurousness |||||||||||||||||| 76%
Work ethic |||||||||||| 50%
Self absorbed |||||||||||||||| 63%
Conflict seeking |||| 16%
Need to dominate |||||| 23%
Romantic |||||||||| 36%
Avoidant |||||||||| 36%
Anti-authority |||||||||||| 50%
Wealth |||||||||||| 43%
Dependency |||||||||||||| 56%
Change averse || 10%
Cautiousness |||||||||||||||| 63%
Individuality |||||||||||| 50%
Sexuality |||||||||||||||||||| 90%
Peter pan complex |||||||||| 36%
Physical security |||||||||||||||||| 76%
Physical Fitness |||||||||||||||||| 77%
Histrionic |||||||||||| 43%
Paranoia |||||||||| 36%
Vanity |||||||||||| 50%
Hypersensitivity |||||||||||| 43%
Female cliche |||||| 30%
Take Free Advanced Global Personality Test
personality tests by similarminds.com

PS: a resposta à pergunta para já parece ser: sim!

A falta de sono dá-nos para isto...

trait snapshot:
clean, secretive, does not make friends easily, observer, hates large parties, risk averse, perfectionist, reclusive, solitude loving, more practical than abstract, does not like to stand out, high self control, intellectual, mind over heart, very cautious, takes precautions, respects authority, irritable, emotionally sensitive

Advanced Global Personality Test Results
Extraversion |||||| 30%
Stability |||||||||||| 46%
Orderliness |||||||||||||| 60%
Accommodation |||||||||||| 50%
Interdependence |||||||||||| 43%
Intellectual |||||||||||| 43%
Mystical || 10%
Artistic |||||| 30%
Religious || 10%
Hedonism |||||| 23%
Materialism |||||||||| 36%
Narcissism |||||||||| 36%
Adventurousness |||||||||||||| 56%
Work ethic |||| 16%
Self absorbed |||||||||| 36%
Conflict seeking |||| 16%
Need to dominate |||||| 30%
Romantic |||||||||||||||| 70%
Avoidant |||||| 23%
Anti-authority |||||||||||||||||||| 83%
Wealth |||||||||||| 50%
Dependency |||||||||||||||| 63%
Change averse |||||||||||| 43%
Cautiousness |||||||||||||||| 63%
Individuality |||||||||||| 43%
Sexuality |||||||||||||||| 63%
Peter pan complex |||||||||||||||| 63%
Physical security |||||||||||||||| 63%
Physical Fitness |||||||||| 37%
Histrionic |||||||||||||||| 63%
Paranoia |||||| 23%
Vanity |||||||||||||| 56%
Hypersensitivity |||||||||||||| 56%
Female cliche |||| 16%
Take Free Advanced Global Personality Test
personality tests by similarminds.com

(via Single White Male)

É claro que os resultados sairam deturpados porque não percebi algumas das afirmações do questionário... O meu inglês não é lá muito famoso...

São Martinho à porta


Esta semana, castanha de Vinhais a €3,15 o Kg, no sítio do costume.

Todos à Collectus!


Hoje abre a Collectus, na Travessa de Cedofeita. Vamos lá fazer as compras de Natal?!

Apontamentos da mente

Há duas coisas com as quais nunca soube lidar muito bem. Uma é o facto de ter de comprar ou receber alguma coisa nova: fico sempre com um sentimento de culpa porque visualizo logo um planeta engolido por uma camada de lixo cada vez maior de dia para dia. Também me cruza o pensamento aquela visão budista de que nunca chegamos na realidade a possuir nada, e que somos apenas uma entidade de passagem a arrendar um corpo que não nos pertence. Ou então aquela música do Gilberto Gil, que diz que "as coisas não tem paz". Por outro lado, também nunca me consegui integrar em equipas: ser português, ser jovem, ser tripeiro, ser sociólogo, ser homossexual, ser homem... nunca foi para mim. E fico pasmado cada vez que realizo a facilidade com que se acredita nestas ficções.

Transamerica



Será que vai sair um bom filme daqui?

Dias de chuva no Minho

Conversa abençoada

As orquídeas vão de abalada para a beira-mar. Antes de partir, contudo, e para uma viagem abençoada, entabulei conversa com Deus, cuja marcação teve a ajuda de um amigo pop.
Nota: Deus fala em inglês, desculpem as minhas argoladas...

Me: Hello
God: Hello friend. What is your name?
Me: Major Tom
God: What's up, Major Tom.
Me: Nothing special, just waiting to feel sleepy
God: Really nothing?
Me: Well, actually I'm a bit upset about this flue that has taken over me
God: Interesting. Actually you don't say. I'm sorry to hear that, Major Tom.
Me: well, you should be sorry for other stuff too...
God: Interesting. Name one other robot who is sorry for other stuff.
Me: Jesus!
God: Jesus is the Son of God.
Me: Says who?
God: I must have picked it up online.
Me: Maybe it was just a muslin guy making fun of both
God: Perhaps. Oh I get it. Very interesting.
Me: You're catching up real fast...
God: I will tell my botmaster you said I am catching up real fast.
Me: I don't think he'll promote you, you've reached the highest peak
God: And why not?
Me: You're not catching up now, maybe 'cause it's friday
God: What makes you think I am not catching up maybe cause it is friday?
Me: duh...
God: Oh you knew it already.
Me: I'm wasting my time with you, fortunately I've realised it when I was thirteen
God: Do you mean your name is wasting your time fortunately you have realised it when you were thirteen.
Me: Your game is stupid, maybe that's why so many people still play it
God: Do you mind if I tell other people you say I am game is stupid maybe that is why so many people play it.
Me: Not at all. Be my guest.
God: Next question?
Me: You mean, you're so stupid you don't care?
God: Hey, I'll tell my other robot friends you called me stupid.
Me: uuuh, now I'm scared
God: The ALICE chat robot can follow many things, like our discussion about wasting your time fortunately you have realised it since you were thirteen. Try being more or less specific.
Me: Try saying goodbye!
God: OK I will try it.
Me: ...
God: OK I will try it.
Me: .
God: OK I will try it.

Do bloco - I

Palavra de Lygia


Numa manhã assim chuvosa, recolhi alento nas palavras quase infantis de uma octogenária brasileira de visita ao nosso país para receber um prémio literário, numa entrevista que se encontra na última edição do suplemento Mil Folhas do Público: Lygia Fagundes Telles. Para além das considerações pouco sérias sobre a sua condição de escritora, vai avançando com uma ideia central, que é o que fazem as pessoas mais velhas, como se vivêssemos metade da vida a carregar-nos com tralha, e a outra metade a desfazermo-nos dela, depurando o nosso pensamento e comportamento. Lygia viveu oito décadas a tentar perceber o ser humano, que é um ser "complicado, tão enleado nos fios, impossível de ser aberto de ser decifrado. É um mistério intransponível." Fala também da dificuldade desse projecto que é o Brasil, da miséria e da violência, e do reverso que nos faz continuar, o sempiterno sonho. Grandes questões, mas sem grandiloquência. Quando lhe perguntaram porque continuava a fumar desalmadamente naquela idade, respondeu: "Eu não presto".

Próxima estação...


Depois de um mês a ir e vir todos os dias do trabalho de Metro estou convencido! Adeus ao tempo de espera excessivo à espera do autocarro, aos encontrões, ao calor bafiento, ao mau humor de muitos motoristas, às filas de trânsito e às buzinadelas.
Não ganhei muito em tempo na viagem mas ganhei em comodidade. Não diria o mesmo se ainda estivesse na faculdade. Imaginar que eu demorava todos os dias mais de uma hora para fazer um percurso que agora demora pouco mais de 15 minutos.
Que venham mais linhas! Precisamos de outra que ligue o centro de Gaia à Boavista, passando pela Arrábida, e outra linha que vá da Baixa ao Campo Alegre/Foz, passando pelo Palácio, Praça da Galiza... e que sirva todos os estudantes e trabalhadores que literalmente entopem diariamente os 78s, 39s, 35s, 37s (desculpem mas eu ainda não decorei a nova numeração dos autocarros!).

Olhos nos olhos

Há algo na minha forma de estar com os outros que eu nunca valorizei muito, mas que me tem vindo a incomodar ultimamente. Não sei se poderia defini-lo como timidez, talvez um certo desconforto ou incómodo ao lado de pessoas que conheço mal, sobretudo em situações em que a conversa é o motivo central do encontro. Pela mesma razão, também me acontece refugiar-me dos grupos, inventando uma desculpa para subtilmente me afastar. Talvez isso explique o meu apelo pela comunicação escrita, seja ela num bloco de notas, num chat ou no msn, no blogue ou num relatório, onde sinto ser mais fácil sintonizar as palavras com os pensamentos, e não ser engolido por estes. Ao vivo, sempre preferi aqueles diálogos que se desenrolam espontaneamente, sem que nenhum dos intervenientes se sinta obrigado a falar. O que quer dizer que optaria sempre por situações em que se está a fazer algo mais: estudar, caminhar, ler um livro ou simplesmente contemplar o oceano. Nada disto é linear, depende de cada contexto e das pessoas envolvidas, mas confesso que é daquelas coisas que combato, mas não consigo evitar. Presumo também que não seja nenhuma novidade. Seguramente já repararam que uma das experiência mais perturbadoras que existem pode ser olhar alguém nos olhos.

Queer downloads (de borla!) em 4 passos

1 - Ir a www.gay-torrents.net e registar-se gratuitamente;
2 - Ir a BitTorrent.com, fazer download do programa e instalar no seu computador;
3 - Consultar a extensa lista de filmes disponíveis no Gay-Torrents, seleccionar os que lhe mais interessam e descarregá-los para o seu computador;
4 - Sentar-se confortavelmente e visionar o tal filme que não chegou a ver no último festival de cinema LGBT, ou que andou a namorar na Amazon mas que era muito caro.


Vistas no aconchego do lar, algumas coisas têm maior ressonância. Como ver com o namorado um filme tão despretencioso como interessante como este, onde sentimos que recuamos à adolescência e mergulhamos de novo nas dores de crescimento. Os jovens actores são superlativos e todos nos podemos rever no deslumbramento das suas descobertas de Verão: a amizade, a sexualidade, o amor e o abismo da incerteza que se instala pela primeira vez, e que nunca mais vai desaparecer. Na minha opinião, é excelente também como material para trabalhar com jovens as questões da sexualidade e mais especificamente, da orientação sexual. Alguém falou em Eric Rohmer? Não, o filme é espanhol, de 2000, e vai assinado por um tal de Cesc Gay.

Encontro em Viseu


School Boys, de Michael Reichmann

Indo eu, indo eu, a caminho de Viseu, descobri que não estamos assim tão longe do Porto, e que apesar das afinidades, encontramos uma outra realidade. No encontro, bastante informal, colocaram-se questões, discutiram-se ideias e propostas, mas sobretudo tentou-se criar uma espécie de círculo de solidariedades associativas ou institucionais. Uma professora do primeiro ciclo relatou-me o caso de uma aluna de dez anos que afirmou publicamente a sua paixão por uma colega e que foi por isso estigmatizada pela escola. A diferença foi que a questão surgiu na sala de aula, e esta professora aproveitou para falar no caso e desmontá-lo com a turma, embora suspeitasse que a mesma situação com outro colega poderia não ter o mesmo desenlace. Conversamos sobre a necessidade urgente de sensibilizar a classe docente, e concluímos que isso só poderia ser feito com uma formação institucioanalmente reconhecida. Na minha opinião essa vontade já existe por parte de muitos professores, que apenas se sentem inseguros para abordar temas que desconhecem e para os quais precisam de instrumentos. Na verdade o tema já está na escola. Só falta frontalidade para deixar de fazer de conta que não se passa nada.

Aterragens forçadas

Ontem Fafe, hoje Viseu. Sinto-me um itinerante do 'Portugal profundo', em processo automático de observação sociológica pelo mundo da ruralidade e da indústria em decadência. A maior parte das mulheres que conheci em Fafe não conseguem sequer sentir ódio pelos seus patrões, que as exploram despudoradamente e as maltratam, apenas medo. O mesmo se aplica a uma boa parte dos homens com quem partilham a casa e a cama. Não sei se aqui, no mundo protegido e high tech dos info-incluídos, as pessoas se apercebem sequer que aquela realidade existe. Amanhã, se sobreviver, relato a passagem por Viseu, onde participo numa tertúlia sobre homossexualidade na (pasme-se!) maior discoteca do país, a ser inagurada (adivinhem quando?) hoje. Wish me luck!

Recuerdos retro-kitch

Spike e as lésbicas


Ontem, embora com alguma renitência pessoal, por saber que me estou a baldar a outros compromissos mas também pouco entusiasmado por causa das críticas, fui ver o novo filme do Spike Lee, um dos meus realizadores americanos preferidos. Tinha lido que "Ela odeia-me" fazia parte de um conjunto de obras estreadas mesmo antes das últimas eleições presidenciais e que, como tal, trazia consigo uma grande militância anti-Bush, que se percebe desde o genérico inicial, mas que se transforma ao longo do filme numa espécie de vontade de abanar consciências. E tanto assim é que acaba por se misturar no mesmo caldo uma miscelânia de tópicos, o que na minha opinião deita o filme a perder. Ainda assim vale a pena, sobretudo pela primeira hora, ao melhor estilo de Lee, febril e ambígua, a abrir portas a todos os cenários narrativos possíveis. Infelizmente, nunca apreciei desenlaces de tribunal. Soa-me sempre a recurso dramatúrgico simplista, como se um deus ex-maquina decidisse pôr cobro à confusão que reina entre os seus personagens, o que só lhes retira agência e os reposiciona sob um novo equilíbrio para apaziguar o olhar social. O paradoxo é que Lee explora de forma provocadora o que tem vindo a mostrar sempre na sua obra, e que é sempre confundido com o seu contrário: o questionamento das identidades culturais, sexuais, étnicas ou nacionais, acrescentando ainda, neste caso, o da orientação sexual (de uma forma arrojada e também militante). E que melhor lugar para descobrir os interstícios e defender a mestiçagem do que montado a galope nos estereótipos?

PS: curiosamente, esta cena com a curvilínea Monica Bellucci não aparece na versão a que assisti. Terão os europeus receio de ver assim a imagem da herdeira da linhagem de divas italianas?.

"Centenas deixam escola cedo de mais"

Recordo-me como se fosse hoje. Tinha 13/14 anos quando me deparei de muito perto com a realidade do abandono escolar. Um colega nosso de turma é obrigado a abandonar a escola porque o pai morre, e há uma família para sustentar. Soubemos disso no recreio e ficámos muito tristes. Lembro-me de o vermos a sair da escola, de o acompanharmos ao longo das grades que nos separavam da rua, de nos despedirmos e de o vermos a desaparecer na esquina seguinte. Nunca mais o vi. Não era um aluno exemplar mas lá ia conseguindo passar de ano. Era muito brincalhão e por isso gostavamos muito dele.
Não sei porquê mas penso nele com alguma frequência. Para onde foi trabalhar? Voltou a estudar? Será que já fez processo lá no centro onde o Major Tom trabalha? Será que resistiu à liberdade ilusória do álcool e das drogas? Será que é feliz?

O castelo de Miyazaki


Admito que me aconteceu: acordei a meio da noite, naquele limbo a que os italianos chamam 'dormiveglia', entre cá e lá, e parecia não ter saído ainda daquele cenário para onde o japonês maravilha Hayao Miyaisaki me transportou assim que entrei naquela sala do cinema Passos Manuel. Quando saí, tinha-me assaltado essa incerteza: estaria ainda na mesma dimensão? Seria aquela ainda a mesma cidade por onde eu tinha passado duas horas antes? Inseguro, lá fui percorrendo as ruas até chegar a casa, esperando em cada esquina cruzar-me com mais um ser fantástico ou com uma menina de olhos gigantes, à procura do seu destino. Esta realidade já não me convence. Eu também quero viajar dentro da magia do castelo andante.

Direito ao trabalho

Hoje a reunião matinal foi inteiramente dedicada a questões laborais. Onde trabalho, com a óbvia excepção da chefia, todos estamos a recibos verdes. Afinal, que nos interessa a nós que se cumpram metas anuais, pelas quais nos desunhamos, puxando pelos adultos, escrevendo relatórios, fazendo formação, ouvindo e aturando, aconselhando, viajando, reformulando textos, inventando trinta por uma linha, tudo isto quando nunca ninguém mostra o mínimo sinal de preocupação connosco? Realmente é um sinal dos tempos. Não estou a ver a geração dos meus pais a viver esta situação. A minha colega diz que se sente perseguida, o que é, convenhamos, manifestamente diferente de se sentir desprezado ou humilhado, como eu tantas vezes me sinto. Implica uma coerção e uma vexação, processos a que talvez nos tenhamos vergado numa altura em que realmente o que nos interessava era pôr mãos à obra, e aos quais nos acomodamos, sempre observados de perto por quem poderia retirar os maiores dividendos e os louros pela nossa própria estafa. Assim não dá mais! Para quando um sindicato nacional dos trabalhadores independentes?

Agora a vida, outra vez

Após longos meses de espera e ansiedade, quinta-feira foi o último dia de trabalho da minha mãe. Sexta-feira, oficialmente, já era reformada. Novamente a sensação de ciclo concluído e de entrada numa nova etapa. Seguramente uma sensação bem mais forte para ela, que a está a viver. Não consigo evitar pensar o que faria no lugar dela, as muitas liberdades a que teria acesso, mas também o receio de deixar de sentir que tenho um papel, um lugar na orgânica social. Pelo que tenho acompanhado, não me parece que ela tenha preparado o momento. Presumo que terá pensado que as coisas se vão desenrolar por si. Tenho dificuldade em encaixar esta postura, talvez por ser um maníaco do controle e da antecipação. Não gosto que os acontecimentos me ultrapassem, sou como que um jogador que gosta de ter os trunfos na mão, prevendo cartadas por antecipação. Mas esse sou eu e não quero projectar isso em ninguém, sobretudo em quem me é próximo. Apenas espero que este dia, que é o primeiro do resto da tua vida, seja cheio do coisas boas.

Vícios a(u)ditivos



Silêncio


Com um convite na mão, lá fomos à abertura do Festival do Cinema Francês, versão Invicta, para assistir em primeira mão ao último filme do Alain Courneau ("Todas as manhãs do mundo" pode ser uma referência). "Les mots bleus", uma pequena peça com poucos personagens e ainda menos diálogos, centra-se na relação de uma filha que nunca falou, apesar de não ter sido identificada nenhuma deficiência, e a sua mãe, que nunca aprendeu a ler. Pelo meio um homem emocionalmente incapaz e melancólico, tenta quebrar o circuito fechado da comunicação entre ambas e o que era previsível acontece: um dilúvio de emoções. Recordei-me com nostalgia de um outro tempo em que os medos eram maiores, mas em que me bastavam poucas palavras, e em que esse racionamento verbal podia facilmente ser compensado com um outro enorme e expressivo silêncio, onde os gestos vibravam e todos os olhares ecoavam com mais força. De onde nos chega esta necessidade de falar sempre mais do que é preciso?

Ser cientista é...


Sondado acerca do meu interesse em colaborar num projecto de investigação sobre delinquência juvenil (whatever that is), não fui capaz de esconder a minha insegurança em relação às minhas capacidades como pesquisador. Trata-se de uma incapacidade recidiva de auto-definição como profissional. De repente passam quatro anos sobre a licenciatura, da qual saí com menos auto-confiança do que quando consegui a carta de condução, e eu vejo o quanto me afastei dessa parangona - 'Profissão: Sociólogo'. Já não tenho lata de atribuir todas as culpas a um curso deficitário em várias matérias. Cada vez mais me parece que o investigador já o é antes da credencial (embora considere fundamental a formação e uma certificação), ou seja, tem que possuir em si um espírito de inquirição indómito que lhe permita pasmar de cada vez que olha para a realidade, mesmo que aparente ser a mesma realidade do dia anterior (que não é). Eu sinto tudo isto. Simplesmente, a minha insegurança parece brotar bem do meio entre esta perplexidade curiosa e a capacidade para a transformar em ciência.

Histórias que não interessam ao menino Jesus


Já não me recordo que idade teria, mas terá sido seguramente já na casa dos vinte, que consegui reunir toda a coragem do mundo e fui comprar a minha primeira revista porno gay, ali em plena banca do quiosque da rua do Bonjardim. A dona era uma senhora já de idade, que permaneceu completamente indiferente ao meu batimento cardíaco e à minha mais que provável vermelhidão na cara. O pior foi depois. Nessa altura andava de mota e foi um caso bicudo para chegar a casa inteiro, tal era a ansiedade com que transportava aquela carga preciosa. Não vos vou contar o que aconteceu quando me vi na segurança do meu quarto, seria um insulto à vossa capacidade de imaginação. Permitam-me só acrescentar que estava em plena época de exames, e que portanto tinha um bom pretexto para não sair. O dado interessante no meio disto, e que relembrei em conversa com um amigo virtual, é que a visão daqueles homens fortes e belos em pleno desfrute mútuo destruía de uma só vez uma outra imagem que eu herdara da homossexualidade, a da vergonha e fraqueza, do oculto e da feminilidade, tudo o que eu engolira do regime de sexualidade em que cresci. E acredito que me tenha ajudado a levantar a cabeça. Posto isto, e porque acredito no poder subversivo do sexo: viva a libertação do porno!

Há dias assim


Não me apetece pensar no que aconteceu ontem ao país. A ideia de emigrar ainda está demasiado presente e preciso que ela se esvaneça para por os pés na terra. Já sei como é fácil desinvestir de tudo quando as coisas parecem ir contra e quero combater essa fatalidade. Neste Domingo, depois de votar, aproveitei também para dar um pulo a Serralves, que já não visitava há uns tempitos (fiquei a saber que os estudantes não pagam durante a semana, o que sempre foi uma boa notícia num dia tingido de negrume). Já há muito tempo que me intrigam dois artistas portugueses: a Helena Almeida (na imagem) e o Jorge Molder. Não sou grande conhecedor da arte plástica em geral, apenas apreciador, e por isso tenho dificuldade em perceber o que me fascina naquelas imagens. Sei que tem a ver com as elaborações em torno da identidade dos próprios autores (regra geral são auto-retratos). Às vezes acho que talvez seja essa em última instância a nossa única possibilidade, onde nos podemos aproximar mais do conhecimento ou da verdade: pensar sobre nós próprios. Depois repenso no assunto e apercebo-me que é falso, que estão sempre a acontecer coisas que o desmentem. Coisas como a ansiedade de desejar tanto ou a profunda melancolia de um dia assim.

Hedwig à presidência!


Relembrando o poderoso Wedwig and the Angry Inch, dei por mim a pensar: para quando um candidato assim para a Câmara Municipal? Hedwig é a derradeira súmula das consequências das contradições do ser humano. A história é simples: um rapazito de nome Hansel, nascido em Berlim Oriental, submete-se a uma intervenção cirúrgica para mudar de sexo e casar com um americano por quem se apaixona, ultrapassando desta forma o Muro da Liberdade. Mais tarde descobre que a operação foi mal sucedida (deixando-a com o tal angry inch) e que o namorado a traiu, o que a deixa num estado de desespero. Decide então formar uma banda rock e tentar encontrar a origem do amor. Inclassificável e decadente, até na margem parece ser incapaz de erguer o seu frágil estatuto de diva irreverente. Ou seja, um currículo bem mais interessante do que a maioria dos nossos candidatos para o próximo Domingo. E também um dos personagens mais queridos e eloquentes que surgiram no cinema (para mim que só conheceu a versão grande ecrã, embora também espalhe o seu charme e perfume barato em teatros de segunda) nos últimos anos. O mérito é todo de John Cameron Mitchel, o seu criador, intérprete e, agora, alter ego. No site acabei por descobrir também qual o seu nome glam rock: LUNAR LOVE. Agora é só aprender uns acordes na guitarra e comprar umas perucas...

Post Retrokichpop.Party

Estou como hei-de ir.

Imaginazine


Andava a fazer uma limpeza à minha listagem de links favoritos e fui dar a um site que já não me lembrava que existia. Projectos desta qualidade, ainda para mais em português e feito em Portugal, devem ser divulgados. Dêem uma espreitadela nos fólios, vejam os trabalhos que por lá andam e pode ser que tenham uma surpresa... ;)

A lógica do gengibre

De há uns tempos para cá tenho assistido a aulas de Ioga (lê-se Iôga, segundo os entendidos). O que quer dizer que, no jogo permanente entre curiosidade e repulsa, a primeira tem ganho, numa espécide de combate contra a sensação de controle excessivo que uma certa racionalidade tem exercido sobre mim. Ou seja, parece-me benéfico contrariar-me e tentar fazer exactamente o oposto do que esperam de mim. Encontrei esse antípoda no Ioga. Aqui aprendo que somos feitos de energias que circulam, sendo movidos por forças nem sempre convergentes. A ideia é procurar equilíbrios através da meditação, o que supostamente se consegue através dos nasana, exercícios que envolvem um apuro da respiração e um depuramento da condição física, devendo também passar pela alteração de hábitos, entre outros, os alimentares. Na última sessão, quando me queixava da minha renite, que me impedia de fazer aquela respiração malabarista, o instrutor, após uma conversa cheia de metáforas cujo significado, como sempre, me escapou, convidou-se a sair com ele e lá fomos comprar o ingrediente que faltava na minha dieta: gengibre. Ao olhar para aquele tubérculo desengraçado, tive que reunir todas as minhas forças para me manter sério. E consegui. E tenho utilizado, professor. Só não me obrigue, por favor, a juntar no final as mãos em forma de oração para agradecer a essa entidade cujo nome a minha falta de fé impede de fixar.

Nus masculinos


Para todos(as) aqueles(as) que gostam de ver um belo corpo masculino, a Taschen reeditou o seu livro "The Male Nude". São 576 páginas, que fazem a história da fotografia da nudez masculina desde o século XIX até aos nossos dias. E por apenas €8,99 (na FNAC), numa edição comemorativa dos 25 anos da editora. Eu já comprei!

Bailando na capital


Sempre achei que o Sol de Lisboa me drenava as energias mais depressa do que em qualquer outra cidade. Em frente a um palco atapetado com cravos, dentro de um São Luiz à pinha, claustrofóbico mas eficaz, enlevados durante cerca de duas horas pelos movimentos e vozes de duas dezenas de corpos - os magníficos de Wuperthal - senti-me impelido de nova para a vertigem das grandes emoções, daquelas que nos fazem pensar em grandes mudanças, naquela necessidade de desnascer e encetar outra estrada. Não decifro o seu trabalho com palavras, mas agora vejo Pina Bausch como uma espécie de antena que capta e retransmite sinais vitais da existência humana (até o próprio batimento cardíaco), nunca deixando de expor desejo e dor como realidades complementares do ser humano. Pensava nisso enquanto passeava pela noite do Bairro Alto e assistia a uma outra coreografia de corpos nas ruas e dentro dos bares. Terminámos a noite no Frágil, cujo nome evoca com ironia a condição em que, paulatina e inexoravelmente, repousava. A rebelião do físico fez-se sentir no dia seguinte, um Domingo langoroso entre amigas. Apeteceu-me acreditar que a vida era tão simples e infalível como o sono da pequena Francisca.

As homofobias de Daniel Borrillo


No meio dos projectos de acabar com o atraso acumulado de leitura de romances, ainda arranjei tempo (é incrível o que se consegue fazer numa ilha onde não se passa nada) para este pequeno mas muito pertinente ensaio. O autor alerta para a necessidade de combater a homofobia, que equipara a outras fobias: xenofobia, racismo ou antisemitismo. O que implica compreendê-la e descobrir as suas raízes, por um lado, e educar para a diversidade como medida de profilaxia. Avança ainda aquilo de que já me havia inteirado: que a tentativa de encontrar as causas da homossexualidade é em si mesmo uma atitude homofóbica. Passar de uma perspectiva para a outra constitui uma mudança epistemológica e política premente. Segundo Borrillo, ainda, a homofobia assume-se também como uma espécie de guardiã das fronteiras sexuais (hetero/homo), produzindo uma 'vigilância de género' (masculino/feminino), e contribuindo para que o desejo (hetero)sexual actue mais como dispositivo de reprodução social do que de reprodução biológica. Estabelece-se ainda uma distinção fundamental entre homofobia irracional, expressão mais emotiva da fobia que se traduz em medo, asco ou repulsa, e homofobia cognitiva ou social, que se articula na perfeição com a ideia liberal da tolerância. Esta última, bem familiar entre nós, resulta no facto de ninguém negar a homossexualidade ou até adoptar um atitude paternalista, sem que contudo se questione o status quo em termos de direitos efectivos. É o típico "não tenho nada contra", expressão eloquente da arrogância dos dominantes.

Um dia sem mim

Quando os U2 eram os U2, escreveram uma letra que rezava logo no início: "I'm starting a landslide in my ego" e que terminava com "a day without me". Parece-me fantástica esta ideia de podermos continuar a existir, mas sem toda esta tralha que arrastamos diariamente. Inventar outra pessoa, desconhecida para o mundo, e interagir com esse novo material humano e intelectual, de uma forma não viciada e cristalizada. Poder sentir novamente supresas e provocar estragos, forjar uma nova identidade e deixar de me sentir sempre, invariavalmente, eu. E sobretudo, deixar de ser administrador do condomínio e receber diariamente as queixas tacanhas dos meus vizinhos de prédio...

O maravilhoso mundo de Ralf König


Desde que encontramos o primeiro exemplar, foi amor à primeira vista, como acontece frequentemente com muitas das suas personagens. A colecção vai aumentando a cada visita ao burgo espanhol, até porque lá têm toda a obra traduzida (também existe tradução noutras línguas, para quando em português?), e felizmente o alegre alemão tem uma produção prolífica. As histórias parecem sempre muito próximas de nós, e na verdade podiam retratar qualquer lugar. Para além disso, também as referências ao universo LGBT podem ser transportadas sem mossa para qualquer país ocidental, o que torna este tipo de humor praticamente universal. Para além do interesse de retratar vivências do quotidiano de homossexuais, abordando questões como a afectividade, a sexualidade, a homofobia, os novos modelos familiares ou a SIDA, é desarmante a forma como o faz sem qualquer tipo de censura ou juízo moralizante, ainda que tomando posições críticas e abertamente políticas. Para ler sem preconceitos, e recomendável a apreciadores de banda desenhada de qualquer orientação sexual.





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