A cidade abandonada

A cidade abandona-se à indiferença da sua tonalidade estival. O trabalho corre languidamente, como se realmente fosse um parêntesis entre fins de semana a explorar avidamente com amigos e próximo da natureza, porque também o corpo é menos racional e mais instintivo. Sente-se o peso de optar por férias em Junho. O cheiro das festas populares invade o relatório de actividades e a acta da última reunião da equipa. Abro a porta do gabinete e lá dentro estão as praias da Galiza; ao fundo do corredor consigo ouvir a água das azenhas de Vilar de Mouros; não me posso esquecer de arquivar as dunas nas capas de arquivo morto e os campos floridos no dossier técnico-pedagógico.

Repetição

Estavamos dentro da maior encruzilhada existencial das nossas vidas. O nosso território era a noite e alguns quartos de soalho de madeira rangente, onde todos trocavam mortalhas e missangas. Eu ouvia a voz do Peter Hamill cantar "...there's something here the anthropologist dare not explain, something about Ysabel's dance", e achava que ele estava no quarto ao lado a ouvir as nossas conversas. O passado tem horas estranhas para nos visitar, como quando ontem encontrei o teu pai, que só me reconheceu depois de eu o interpelar, enquanto brincava com a menina da caixa do Continente. Disse-me que tinhas regressado de vez dos países baixos, e que trazias na bagagem dois gatos, que iam ter de partilhar o orçamento com os outros dois que já cá paravam. Eu próprio te relembrei como uma felina, uma espécie de elo perdido de uma evolução humana paralela e oculta.
Como será olhar para nós próprios passados doze anos?

Apologia de um ateu paradoxal


A visão recente de Saraband, o último filme de Bergman, atiçara ainda mais em mim a vontade de ver as famosas “Cenas da Vida Conjugal”, que este filmara para a televisão trinta anos antes com as mesmas personagens. Num desses dias que nos lavam a alma, fizemos uma visita campestre a amigos e resgatei duas cassetes VHS com a série completa. Logo nas imagens iniciais, quando pedem ao protagonista masculino que se descreva em poucas palavras, este não resiste em desfiar um chorrilho de auto-elogios em tom sarcástico, mas acrescenta no final, numa pose contemplativa, que gosta da Paixão de São Mateus, de Johann Sebastian Bach. Lembrei-me daquelas dinâmicas que os psicólogos tornaram populares, seguramente como resultado do clima psicológio vivido durante a chamada guerra fria, em que o risco de uma guerra nuclear estava bem presente: o que levaríamos connosco para o abrigo anti-atómico ou para uma ilha deserta? Eu talvez não hesitasse na mesma predileção musical, e acrescentava-lhe uma outra paixão de pintura: aquela Flagelação recentemente contemplada numa ala deserta de Capodimonte, em Nápoles, e cujo autor respondia pelo nome de Michelangelo Merisi, dito o Caravaggio.

Somos todos recibos verdes!

É precisamente quando se sente confortável que o poder se torna mais perigoso e dá lugar à impunidade. Todos sabemos como o mercado de trabalho se tornou instável e volátil nos últimos anos. Este governo foi eleito precisamente como resultado do desprezo pelas políticas que contribuíram para esse estado actual das coisas. Dir-se-ia, como tal, que a linha seguida pela equipa de Sócrates estaria a entrar em profunda contradição com aquilo a que se comprometeu, e que a sociedade civil reagiria com a correspondente indignação. Talvez noutro país, mas aqui, onde os resultados nas provas de matemática são o que são, nem sempre podemos dizer que um mais um é igual a dois, e não se ouve nem pio.

A linha da leitura


Haverá coisa melhor do que devorar nas férias aqueles livros que vamos encostando ao longo do(s) anos precisamente para esse efeito? Bem, haverá, mas digamos que numa lista de favourite things este andaria perto do topo. Entre uma viagem e outra, este ano houve tempo para "A linha da beleza", esse romance visceralmente britânico (o que poderá afastar alguns) de Alan Hollinghurst, que me agarrou com um retrato da implacável estratificação social, num cenário perfeito para desenhar ascenções e quedas de heróis. São vários os significados que a linha do título assume ao longo da narrativa, reveladores dos vários tons que a atravessam: ora remete para um ornamento decorativo típico de palácios abastados, ora para a linha dessa popular droga dos eighties, ou ainda para o dorso de um nú masculino. Uma profunda reflexão sobre a Inglaterra sob o jugo da Dama de Ferro, a que não faltam uma alusão musical aos The Clash (curiosamente na transposição televisiva - na imagem - ouve-se ´Brand New Cadillac', um dos poucos temas hedonistas de uma banda quase sempre política, e que eu associo sempre à minha irmã e a um Verão de quase identificação fraternal).

Objectos


O anúncio de uma pequena feira de objectos usados levou-nos à Ribeira de Gaia. Dentro de um antigo armazém de vinho deparamos, para além do cheio a mofo, com uma daquelas colecções de coisas que à força de se tornarem obsoletas voltam a ganhar um novo interesse, desta feita quase arqueológico e sentimental. O nosso contributo para a operação de reciclagem foi a aquisição de uma pequena publicação, com cerca de 30 anos, da cinemateca sobre o Robert Bresson com magníficos fotogramas (a comprovar, como na imagem, que se tratava de um pintor tanto como de um cineasta), e uma cadeira de madeira que fica a matar no quarto de hóspedes. A história das coisas é maior do que a nossa.

Domingo


O hábito faz o monstro, dizia uma música dos Rádio Macau. E nós, obedientes, tentávamos iludir a rotina com a ilusão da novidade. Agora já me sinto mais reconciliado com as pequenas repetições do quotidiano, como se sentisse aquela necessidade das crianças de ouvirem todas as noites a mesma história antes de adormecer. É bom sentir a consistência e tamanho do meu colchão, disputado com aquele corpo a respirar do meu lado direito; é bom acordar e sentir a primeira cafeína do dia a fumegar na chávena de vidro; é bom rever um desenho do Jean Cocteau ou voltar a ouvir aquela cassete com o primeiro álbum dos R.E.M.; é bom voltar ser um bocadinho de Domingo em casa.

O cinema hoje


Nápoles, para além dos magníficos pallazzi do século XVI cujas fachadas se erguem com escassa distância umas das outras por cima dos vicoli, essas ruas genialmente concebidas para proteger o homem da violência solar, é também a cidade do comércio tradicional por excelência: ali encontra-se tudo sobre música, livros ou arte em geral, e até mesmo os legumes parecem resultar de uma fórmula ancestral religiosamente guardada desde tempo imemoriais. Nas ruas, entre lojas de amuletos de polichinelo e de jogos populares espalham-se bancas de livros usados, e é uma delícia perder tempo a vasculhar nestes pequenos arquivos amontoados. Numa delas encontrei uma edição bilingue das "Leaves of grass", de Walt Whitman e um pequeno ensaio sobre cinema datado de 1976 (excerto na imagem), cuja capa amarelada pelo tempo tornava ainda mais delicioso o pomposo título: "Il cinema oggi" (tudo pela módica quantia de 2 euros, meus senhores). Na porta ao lado compra-se um arancino (pequeno bolo frito de arroz) e temos refeição para estômago e intelecto. Durante uma viagem de barco perdi-me na nostalgia daquele texto sobre os "novos" criadores de imagens: Fellini, Bergman, Visconti, Rosselini, Antonioni, Resnais, Godard, Truffaut, Buñuel, estavam lá quase todos os que nos fizeram crescer. Basta ler a entrevista de Jack Nicholson no Público de ontem e confirmamos que, cá para nós, mesmo quando não estão creditados no genérico, o cinema hoje ainda é deles.

Luz


O Sol é uma grande lâmpada que imprime na Terra a marca das montanhas, das casas e das árvores. Tudo, até o nosso corpo, se transforma num imenso cianotipo. Eu quando for grande quero ser sombra.

Demónios

Os demónios costumam respeitar a perseverança. Era o que dizia uma envelhecida Deborah Kerr a um derrotado Richard Burton, sob o olhar atento e carnal de Ava Gardner nesse magnífico e irrepetível "A noite da iguana", de John Huston, segundo um texto de Tenessee Williams (um dos que confirma a tese de que todos os escritores norte-americanos interessantes eram homossexuais - talvez por isso familiarizados com o assunto em questão?). Com que idade podemos dizer que fomos perseverantes? Poderemos um dia reclamar vitória sobre o nosso inferno pessoal?

Mosaico stromboliano (3ª e última parte)

Mosaico napolitano

Mosaico romano

Schizzi

Viaggio in Italia (3)


Panteão, Roma

Viaggio in Italia (2)


Subir a pé os 918 metros que são precisos para chegar ao topo da ilha de Stromboli foi a experiência mais radical e emocionante que já fiz em toda a minha vida! Mais de 3 horas de caminho, sempre a subir, tudo para podermos observar bem de perto o majestoso vulcão em actividade. Aproximadamente de 20 em 20 minutos dá-se uma explosão como esta que podem ver no pequeno filme que consegui registar. Absolutamente fantástico e muito assustador!



Para as pessoas poucas dadas a aventuras tão radicais há sempre a possibilidade de jantarem tranquilamente no restaurante L'Osservatorio, situado a apenas 100 metros de altitude. Sem música, as mesas iluminadas apenas com a luz das velas nas mesas, pelos clarões das explosões do vulcão e pelo luar (se houver). Deve ser o restaurante mais romântico do mundo!

Viaggio in Italia



Sobrevivemos às hordas de turistas que povoam as ruas de Roma, ao trânsito caótico de Nápoles e à súbida ao grande vulcão de Stromboli, para vos poder contar por palavras e imagens este périplo por terras italianas. 15 dias cheios de muitas aventuras, emoções e recordações. Agora resta-nos "back to reality" e programar um regresso às belezas desse país.





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