Melodias para adultos

Assisti ontem na Casa da Música ao espectáculo The Last Nomads of Rajasthan, uma espécie de wonder team da arte nómada indiana. Trata-se de um colectivo colorido e multifacetado composto por bailarinas, percursionistas, tocadores de cítares, tímbalos e outros instrumentos para mim desconhecidos e ainda um divertido engolidor de facas. Pelo meio, dois bailarinos drag e movimentos sensuais distribuídos por ambos os sexos, num ambiente com cheiro a insensos e tabacos exóticos.
Mal recuperado, despertei esta manhã para mais um seminário profissional, onde voltei a ouvir a Olívia Santos Silva, uma das fundadoras do modelo actual de educação e formação de adultos, falar sobre a importância de respeitar a especificidade de cada indivíduo e da muy 'freiriana' capacidade mobilizadora contida no processo de conscientização a que este (idealmente) se presta com a mediação dos técnicos nos processos de reconhecimento de competências. Mencionou ainda en passant a inevitabilidade da integração territorial das estruturas já criadas neste âmbito, ou seja, a necessidade de ligar os processos de educação e formação à envolvente local do próprio adulto.
Não consegui evitar pensar que o texto que os adultos constroem para demonstrar o seu percurso necessita de um olhar que reconheça os diferentes 'territórios' que permitiram a sua vivência, tal como a bailarina reconhece o ritmo e melodia como realidades suas, e sabe, como tal, identificar o momento certo em que deve iniciar e terminar o movimento da sua dança. Não se trata de um capricho. O meu ouvido está educado para 'entender' melopeias e compassos ocidentais, estruturas de que a música indiana tradicional se desvia de forma significativa, estabelecendo o seu próprio ambiente sonoro. Se entro num novo 'território', eu posso ouvi-lo e contempla-lo, mas não posso nem devo fazer de conta que o sei descodificar.

Marie Antoinette II

Esta música não me sai da cabeça pelo segundo dia consecutivo...

Marie Antoinette


Uma prisioneira num palácio. Um trabalho notável de reconstituição, de elaboração barroca, com imagens deslumbrantes (algumas mesmo sublimes) e enquadramentos que reconstituem na perfeição o imaginário pictórico da época. Todo o cenário, apesar de real, funciona como uma abstração: mil olhares vigiam os mínimos movimentos da rainha adolescente, joguete maior da encenação decadente do fim da velha ordem. As crianças são pequenos adultos, como muito bem observara Phillipe Ariès. A música, entre as composições de época para orquestras de câmara, e os sons urbano-depressivos dos New Order ou dos The Cure, insere-se no cenário e comenta a narrativa. Um filme arriscado (em todos os sentidos, sendo a ausência de 'comentário político' o mais evidente), mas quanto a mim conseguido, desse valor seguro que começa a ser a assinatura da Sofia Coppola.

Literatura aos molhos

O aniversário de uma ex-namorada que se tornou amiga é sempre um bom pretexto para um reencontro anual. Aproveitei a proximidade do Corte Inglês e lá fui espreitar a secção dos livros. Nos escaparates, a habitual panóplia colorida de best sellers e lançamentos de Outono para rápida digestão. Pelo meio, alguns poucos clássicos. Retirei um Jorge de Sena e uma voz ao meu lado disse "prefere os clássicos? Já leu o último dele? Aliás o único romance, Sinais do Fogo? É um excelente retrato da época do fascismo". Anui com um sorriso amarelo, ao perceber que se tratava do funcionário da secção, vestido como um funcionário bancário à caça de clientes. "Mas esteja à vontade". Dei a volta ao escaparate e desta vez retirei um da Agustina, cujo título não conhecia. "Ah, o último da Agustina! Normalmente ela tem um estilo rebuscado, há quem não goste. Desta vez ela procurou fazer algo diferente, interessante". Incomodado, voltei a pousar o livro. Não queria acreditar que me estavam a tentar impingir livros, como quem vende um crédito imobiliário ou um colchão ortopédico. A medo, e um pouco precipitadamente, escolhemos o último do Luis Sepúlveda e fomos pagar. Ainda receei, por instantes, que ele acrescentasse algum comentário, do estilo: "É um escritor que alia o domínio da tradição do conto com a consciência social, um belíssimo representante da expressão escrita latino-americana. Uma excelente escolha!". Mas o homem de gel e gravata, como uma caneta na mão, apenas comentou, com um ar pouco entusiasmado e num tom desanimado: "Perderam foi a sessão de autógrafos". Duvidei seriamente que tivesse alguma vez lido qualquer dos livros.

Luiz e a comunidade


A propósito de um documentário reposto pela RTP sobre o Luiz Pacheco, relembrei-me do deslumbre arejado que foi ler textos como os "Exercícios de Estilo" ou "A Comunidade" na minha adolescência tardia. Pensei que era uma pena que o Luiz estivesse confinado a um lar há vários anos (o MC não lhe financiaria uma transfusãosinha de sangue, de preferência de uma lolita de colégio ou de um magala rural perdido na cidade?). Ele teria certamente uma opinião prosaica a propósito desta questão do Rivoli, qualquer coisa onde adiantasse que se andam a f##r a cultura, esta está bem na altura de mandar a autarquia à merda (uma tirada que recolocaria o neo-abjeccionismo na berlinda). Provavelmente acrescentaria qualquer coisa acerca das várias putices que outros supostos arautos da cultura andam a engendrar, em alegre e lucrativa prumiscuidade com o mercado (como daquela vez em que denunciou que o Fernando Namora tinha plagiado um texto ao Virgílio Ferreira). Quem não tem papas na língua que avance, por favor. Estamos fartos de chafurdar.
Ilustração de Alice Geirinhas.

à chuva

Não devo ser o único, mas sinto que cada hora (e já foram muitas) enfiado dentro de um automóvel numa fila de trânsito me suga alguns meses de vida. Tenho tentado reduzir a utilização a um mínimo indispensável, como nas deslocações a outras cidades (sobretudo quando não servidas pelo comboio). Mas as três horas que passei hoje à entrada da A3, que me obrigaram a desmarcar um compromisso com 22 fafenses que esperavam por mim à chuva, revestiram o acontecimento de novas proporções. O que me deixa perplexo, agora que já acalmei, é a capacidade que temos para gerar raiva de uma forma irracional, não focalizada e em quantidades épicas nestas situações. Só mesmo o teu sorriso, já quase adormecido, depois de pacientemente ter aconchegado a gata, e quase dentro dos lençóis, é capaz de dissipar a tempestade e redimir o absurdo quotidiano.

Two to tango

- "Estás a avançar pouco!!"
- "Tu é que não dás as indicações!!"
- "Dás oitos demais!!"
- "Deixa de olhar pró chão!!"
- "Tens que ouvir a música!!"
- "Não me puxes!!"
- "Não me empurres!!"
- "Não me ouves!!"
- "Não te explicas C##!!"
No tango existem os pares-pares e os pares-casais. Eu e o Planeta Ju pertencemos à primeira categoria. Somos os únicos que não discutem, e rodamos pelo salão, divertidos na mímica do matrimónio heterossexual, a mais imperfeita e rebuscada criação teatral que o génio humano concebeu.

Novos sabores da estação

Nos últimos dias, há coisas que me têm deliciado...

Charlotte Gainsborg - 5:55

(The operation)


.. que me têm surpreendido...

Caetano Veloso -

(Deusa urbana)


... ou que simplesmente me têm obrigado a parar.

Bonnie 'Prince' Billy - The letting go (deste álbum, em baixo: "Cursed Sleep")

O gato chileno

Luis Sepulveda, esta noite, na Biblioteca Municipal de Matosinhos, a pretexto do lançamento do livro mais recente - O Poder dos Sonhos (fez logo questão de sublinhar que não se tratava, apesar do título, de um manual de auto-ajuda), relembrou-nos a necessidade de reabilitação da ética na vida social, cultural e política das sociedades actuais. Dessa necessidade, e por se considerar cidadão antes de escritor, nasceu esta obra não ficcionada (pelo menos formalmente), como resultado de um conjunto de reflexões sobre o estado da sociedade chilena e dos seus percursos. O auto também sublinhou eloquentemente, naquela forma quente e cativante que a sua voz destila, a importância do encontro entre culturas como algo de enriquecedor (ele próprio é neto de dois espanhois, uma do País Basco e outro da Andaluzia, de uma italiana e de um índio do Paraguai). Foi dessa convicção, aparentemente, que nasceu a história de um certo gato que, ao perceber que não podia ser como uma certa gaivota, aceitou essa diferença e dela fez um objecto de paixão.

Ideias para short stories

Não há mesmo melhor ficção que a realidade. Quando me dou ao trabalho, divirto-me a registar pequenas ideias, observadas em jornais, na televisão, em conversas ou à minha volta. Ficam alguns exemplos:
- foi celebrado um casamento entre dois mortos, agendado pouco antes do assassinato da mulher, que estava grávida, e o subsequente suicídio do homem.
- se existisse um museu imaginário com todas as obras de arte roubadas ao longo da História, ele albergaria, entre outros, 541 Picassos, 147 Rembrandts, 209 Renoirs, 3 Vermeers, Caravaggios, Van Eycks e Cézannes.
- um homem foi descoberto pelos próprios credores, morto há dois anos, em frente a um ecrã de televisão.
- um carteiro descobre na casa de um carpinteiro a quem vai entregar a correspondência a porta do seu próprio quarto de infância.

Os dados estão lançados. Agora é só ter tempo e engenho para explorar as consequências.

O (Re)Nascimento de Vénus...


...d'après Major Tom.

Planeta identidade


Era uma leitura adiada há já algum tempo, ontem terminada com a gata ao colo e sob o aconchego de um Sol de fim de dia. Amin Maalouf, jornalista e escritor, natural do Líbano e residente em Paris, de formação eclética e defensor da miscigenação, escreveu este pequeno ensaio sobre o poder opressor das identidades, em jeito de apelo humanista à desconstrução do ódio entre culturas. Os princípios básicos de "As Identidades Assassinas" são simples: caminhamos para a proliferação exponencial das identidades fronteiriças, e somos o resultado de um compósito de pertenças identitárias (entre outras coisas sou português, mas também europeu, homossexual, sociólogo e portuense, e cada uma destas facetas é realçada de acordo com a situação em que me encotro). Neste cenário, a política deve ser algo que parta da indiferença ou indistinção das pertenças identitárias dos indivíduos e colectivos. Devemos para tal procurar estabelecer o postulado da reciprocidade dos contactos culturais. Em democracia, nem maiorias nem minorias devem ditar a lei. O cimento deve ser o respeito fundamental por todas as configurações identitárias, desde que salvaguardados alguns direitos humanos básicos. Apenas deste modo se pode combater, sob o signo da mundialização, o risco de uma uniformização hegemonizante de uma cultura sobre todas as outras ou a violência do choque entre as tribos planetárias (religiosas, políticas ou culturais), caminhando simultaneamente para uma ideia de universalidade, alimentada pela infindável riqueza da diversidade de patrimónios da humanidade.
Desenho da Mimi.

Anita no divã


Se existem denominadores comuns numa geração, daqueles que despoletam conversas a partir das duas da manhã em qualquer bar de qualquer cidade portuguesa, um deles é a remissão para alguns universos da infância, esse inesgotável baú de nostalgia e redescoberta individual e colectiva. O facto de quase todos termos lido as aventuras da Anita, essa que agora completa 50 anos de história, é um bom exemplo. É difícil descortinar o que tanto nos cativava nessa pequena (em vários sentidos) e assexuada personagem que habitava o nosso imaginário. Talvez fosse em parte a escassez de ofertas alternativas, mas também a sedutora puerilidade e a escapista capacidade de gerar fantasias a partir daquelas imagens. Hoje em dia não encontramos facilmente homens que admitam francamente ter lido e relido aquelas páginas(mas que os há, há), em contraste com as mulheres, outrora meninas para quem a publicação parecia exclusivamente concebida. Não havia nada de pedagógico, nada de 'evolutivo' na definição da personagem. Apenas as imagens, docemente anacrónicas e de uma magia académica mas eficaz, que ficaram gravadas no início do nosso crescimento.

Fotos


Vale a pena estar atento: há duas exposições fotográficas potencialmente interessantes em cena: a de Paulo Nozolino, sobre o universo cigano, na Quadrado Azul, no Porto, e uma outra que veio com destaque na revista do Notícias no último Domingo, sobre o curioso trabalho de uma associação que tem como objectivo ajudar a encarar a chegada da morte. "O trabalho foi realizado durante várias semanas em diversos hospitais, acompanhando doentes terminais que sabiam que iam morrer em breve." O resultado pode ser visto no Museu da Água, em Lisboa, até ao dia 21 de Outubro.

Bota feriado

Enquanto forma de celebração ou mecanismo de manutenção da memória de um colectivo social, os feriados nacionais valem o que valem. No nosso país, o peso atribuído às efemérides católicas diz bastante da violência monocultural que continua a vigorar num Estado supostamente laico.
Proposta pessoal para nova agenda de feriados:
A manter:
- o 25 de Abril
- o 1º de Maio
A eliminar:
- todos os outros em vigor
A acrescentar:
- 1 de Janeiro (novo ano, novas resoluções): dia do ambiente
- data a definir: dia da luta contra a pobreza e a exclusão social (uma temática específica designada anualmente)
- oito de Março: dia das mulheres
- 1 de Dezembro (a escolha da data evocaria simbolicamente a refundação do país segundo uma nova premissa): dia da mestiçagem cultural
- 28 de Junho: dia do cidadão gay, lésbico, bissexual e transgénero

Profissão: Repórter


Há um momento decisivo no filme Profissão: Repórter (o filme fantasma de Antonioni, três décadas fora de circulação - esta semana em exibição no Teatro do Campo Alegre): é aquele em que a personagem de Maria Schneider se dirige ao homem com quem decidiu escapar, sem saber muito bem de quê, e lhe pergunta precisamente isso - "de que é que tu foges?". O homem, ao volante de um descapotável algures no Sul ibérico, pede-lhe para se virar de costas no banco de trás, e nesse belíssimo plano de uma mulher suspensa a olhar para a estrada que fica para trás, com os cabelos a esvoaçar e os braços abertos, percebemos que é do passado que se fala, esse que o homem já tentara literalmente destruir, fazendo-se passar por morto e assumindo uma nova identidade, esse mesmo passado que nos torna prisioneiros dos papeis (de marido, de pai, de uma profissão, etc) e que arrastamos como um navio arrasta a sua âncora. A Jack Nicholson ficou a tarefa de encarnar o paradoxo da fuga e da incapacidade de fugir, e fá-lo lindamente.





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