Marramao e o contemporâneo
Impelido pela curiosidade de ouvir um filósofo de primeira linha ao vivo e a cores, e no meu dialecto preferido, fui assistir à primeira conferência do ciclo "Crítica do Contemporâneo" da Fundação de Serralves. Giacomo Marramao, o ilustre orador, veio-nos falar sobre a necessidade de repensar a modernidade, esse grande chapéu da filosofia política actual. Começou por coleccionar argumentos contra o previlégio do pensamento ocidental, construído a partir da matriz grega até à actual hegemonia norte-americana, uma ocidentalização, tão técnica como espiritual, que não deve ser confundida com a modernização (esta caracteriza-se antes pelo processo de secularização).
Para pensar a política actualmente, é preciso perceber a emergência de uma 'política universalista da diferença', sendo esta 'diferença' (no singular) uma questão de ângulo, de olhar sobre a realidade.
Avançou então com várias teses, observações e interrogações:
- a falácia da pós-modernidade ou globalização enquanto etapa oposta à anterior, quando na verdade assistimos também a continuidades e a ruptura reside essencialmente na tensão entre uniformização e diferenciação;
- o 'curto circuito do glocal': o anel intermédio entre o local e o global - o Estado-nação - encontra-se em crise (em termos qualitativos, uma vez que em termos quantitativos se assiste ainda um 'boom' de novos Estados), crise que reside no facto de esse mesmo Estado se revelar demasiado pequeno face às dinâmicas do mercado global e, por outro lado, demasiado grande face à multiplicação dos apelos e à diversidade do local; a glocalização funciona assim como uma 'tenaz' sobre os próprios Estados;
- assistimos à consolidação de um duplo modelo: o cosmopolitismo dos pobres e o simultâneo localismo dos ricos (podemos localizar no mapa-mundo as regiões mais ricas);
- os conflitos mundiais possuem uma dimensão materialista, indubitavelmente, mas eles são cada vez mais também conflitos identitários (vindo as religiões, por hipótese, ocupar o lugar deixado livre pela hegemonia do pensamento ocidental);
- incomensurabilidade e comparabilidade das culturas: sendo o relativismo cultural uma forma de olhar as culturas (e não um modelo ético), o facto de não podermos considerar um único critério de leitura da(s) realidade(s) deve impedir a sua comparação e confronto?
- a própria visão do ocidente e oriente como realidades homogéneas e opostas entre si é parte integrante de um olhar ocidental sobre o mundo (olhar que não existe no oriente), e que tenta estabelecer uma outra polarização fundamental: entre a primazia do indivíduo e a primazia da comunidade enquanto princípios de organização social.
Curiosamente, para Marramao, a filosofia volta a lidar com as mesmas interrogações da sua própria origem. Simplesmente a esfera pública já não é a dos cidadãos da pólis, mas é a dos nómadas e dos migrantes, e o espaço da política reside entre o Estado e os indivíduos. Não vivemos uma crise mas sim uma pluralização de valores, valores que cada indivíduos transporta consigo como se de múltiplas vozes se tratassem: não no sentido esquizóide, como na personagem d'"0 Exorcista", mas antes como resultado dos múltiplos encontros de culturas, definindo a singularidade individual que demarca o primeiro patamar da diferença. Para este italiano, devemos pensar numa 'ontologia da contingência', como resultado frágil mas nobre das nossas vivências (é de mim ou tudo isto é um pouco queer?).
Um debate deste género, como sublinhou, pode ser mais um exemplo do ambiente de experimentação que já fervilha nas cidades europeias, onde já se pode vislumbrar uma lógica de horizontalidade (do diálogo), que as instituições europeias (verticalizantes) não conseguem reproduzir.
Que outras conversas se sigam.
Etiquetas: cidadania, educação, investigação
Publicado por Major Tom - sexta-feira, março 30, 2007 à(s) 00:46
Os colóquios custam o mesmo que um bilhete de cinema: 5 € (com descontos para estudantes de algumas licenciaturas) e o ingresso pode ser adquirido no local (atenção que da última vez a sala encheu!)