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Rancière e o contemporâneo



"As desventuras contemporâneas do pensamento crítico", segunda parte do ciclo de conferências de Serralves, começou com um atraso que evocava já algumas desventuras da contemporaneidade (a greve nos aeroportos franceses impediu o ilustre orador de chegar atempadamente). Refiro-me à nossa dependência do que Giddens bem designou de sistemas periciais (essas estruturas que nos permitem voar a sete mil pés de altitude ou falar com um desconhecido em Tóquio com uma webcam, mesmo sem fazer a mínima ideia de como tal é possível).
Com Jacques Rancière, fomos introduzidos na tentativa de demonstração da possibilidade de um pensamento crítico nos dias que correm, ainda que contra os vaticínios trágicos e contra-producentes de uma esquerda melancólica, nostálgica das suas conquistas. Se os eventos que se sucederam a 1989, com o colapso da União Soviética, se traduziram no final de uma oposição entre democracia e totalitarismo, podemos agora sustentar que o ‘inimigo’ (se o entendermos como o alvo do pensamento crítico) reside no âmago das democracias liberais, que parecem querer confirmar o triunfo do capitalismo. O entendimento do que é igualdade deve lido a esta luz: trata-se aqui de uma igualdade de acesso ao consumo, e não já como a atribuição de direitos de cidadania.
O pensamento crítico pode regressar assim às suas interpretações iniciais, que lidavam com a tensão entre ideias de emancipação, tal como evocadas nas clássicas tertúlias platónicas.
Para Rancière, a democracia deve ser o exercício político dos que não tem lugar (os n’importe qui), ou seja, os que ficaram sempre de fora de uma estratificação criada pela detenção de conhecimentos, títulos ou capital no acesso à pollis.
A visão de uma contemporaneidade em que todos os conceitos duros ou ideologias se dissolveram, correspondendo a uma imagem de modernidade líquida (impermanente), retoma de certa forma o pensamento marxiano (“tudo o que é sólido se desfaz no ar”). Neste cenário, o pensamento crítico, que outrora estava ao serviço da emancipação e capacitação dos desapossados, parece agora servir apenas o empowerment de uma elite intelectual (Rancière numa tirada repleta de sentido de auto-irrisão).
Contudo, o "ódio à democracia", ou seja, o cerco montado de ataques ao conceito de democracia que questiona permanentemente a sua validade no quadro de pensamento contemporâneo, pode ser firmemente contradito por uma pressuposição básica: a da igualdade intelectual potencial das pessoas, essa capacidade de pensamento que se tem traduzido em manifestações de combate crítico (manifestações, movimentos de mobilização, etc), que são respostas cabazes aos que percepcionam o indivíduo como um receptor passivo e estupidificado pela avalanche de mensagens e estímulos visuais do mundo contemporâneo.

Marramao e o contemporâneo

Impelido pela curiosidade de ouvir um filósofo de primeira linha ao vivo e a cores, e no meu dialecto preferido, fui assistir à primeira conferência do ciclo "Crítica do Contemporâneo" da Fundação de Serralves. Giacomo Marramao, o ilustre orador, veio-nos falar sobre a necessidade de repensar a modernidade, esse grande chapéu da filosofia política actual. Começou por coleccionar argumentos contra o previlégio do pensamento ocidental, construído a partir da matriz grega até à actual hegemonia norte-americana, uma ocidentalização, tão técnica como espiritual, que não deve ser confundida com a modernização (esta caracteriza-se antes pelo processo de secularização).
Para pensar a política actualmente, é preciso perceber a emergência de uma 'política universalista da diferença', sendo esta 'diferença' (no singular) uma questão de ângulo, de olhar sobre a realidade.
Avançou então com várias teses, observações e interrogações:
- a falácia da pós-modernidade ou globalização enquanto etapa oposta à anterior, quando na verdade assistimos também a continuidades e a ruptura reside essencialmente na tensão entre uniformização e diferenciação;
- o 'curto circuito do glocal': o anel intermédio entre o local e o global - o Estado-nação - encontra-se em crise (em termos qualitativos, uma vez que em termos quantitativos se assiste ainda um 'boom' de novos Estados), crise que reside no facto de esse mesmo Estado se revelar demasiado pequeno face às dinâmicas do mercado global e, por outro lado, demasiado grande face à multiplicação dos apelos e à diversidade do local; a glocalização funciona assim como uma 'tenaz' sobre os próprios Estados;
- assistimos à consolidação de um duplo modelo: o cosmopolitismo dos pobres e o simultâneo localismo dos ricos (podemos localizar no mapa-mundo as regiões mais ricas);
- os conflitos mundiais possuem uma dimensão materialista, indubitavelmente, mas eles são cada vez mais também conflitos identitários (vindo as religiões, por hipótese, ocupar o lugar deixado livre pela hegemonia do pensamento ocidental);
- incomensurabilidade e comparabilidade das culturas: sendo o relativismo cultural uma forma de olhar as culturas (e não um modelo ético), o facto de não podermos considerar um único critério de leitura da(s) realidade(s) deve impedir a sua comparação e confronto?
- a própria visão do ocidente e oriente como realidades homogéneas e opostas entre si é parte integrante de um olhar ocidental sobre o mundo (olhar que não existe no oriente), e que tenta estabelecer uma outra polarização fundamental: entre a primazia do indivíduo e a primazia da comunidade enquanto princípios de organização social.

Curiosamente, para Marramao, a filosofia volta a lidar com as mesmas interrogações da sua própria origem. Simplesmente a esfera pública já não é a dos cidadãos da pólis, mas é a dos nómadas e dos migrantes, e o espaço da política reside entre o Estado e os indivíduos. Não vivemos uma crise mas sim uma pluralização de valores, valores que cada indivíduos transporta consigo como se de múltiplas vozes se tratassem: não no sentido esquizóide, como na personagem d'"0 Exorcista", mas antes como resultado dos múltiplos encontros de culturas, definindo a singularidade individual que demarca o primeiro patamar da diferença. Para este italiano, devemos pensar numa 'ontologia da contingência', como resultado frágil mas nobre das nossas vivências (é de mim ou tudo isto é um pouco queer?).
Um debate deste género, como sublinhou, pode ser mais um exemplo do ambiente de experimentação que já fervilha nas cidades europeias, onde já se pode vislumbrar uma lógica de horizontalidade (do diálogo), que as instituições europeias (verticalizantes) não conseguem reproduzir.
Que outras conversas se sigam.

Entre invicta e augusta II

Voltei a Braga para um colóquio sobre sociologia da educação. Os minhotos parecem apostados em levar lá toda a gente que lhes permita aprender algo de novo. Desta vez, um peso pesado: o argentino Carlos Alberto Torres. Infelizmente cheguei tarde, apenas a tempo de o ouvir falar da importância de questionar o conceito corrente de cidadania, presente no título do encontro, e da necessidade de 'ouvir' os novos movimentos sociais, os mensageiros de um novo modelo ético e moral, assim como de interligar teoria e experiência no percurso do conhecimento. Tudo para, como disse citando Paulo Freire, ajudar a criar um mundo onde seja mais fácil amar (nada mais cativante para ouvir no início de uma manhã chuvosa). Depois ainda ouvi a Luiza Cortesão, que amadrinhou algumas sessões interessantes no meu mestrado, a reafirmar que devemos caminhar para encontrar uma justiça cognitiva, pré-requisito essencial se quisermos pensar a sério em qualquer ideia de justiça social. Para ela, isto implica pensar a educação com olhos diferentes, alertas ao daltonismo cultural que tem atravessado as nossas salas de aula, ou seja fornecer uma cultura operacional, sem esmagar as raízes culturais e conhecer a realidade através de uma prática, ainda que tacteante, de investigação-acção.

Energia de activação, pró bem da nação

Sempre me pareceu coerente perspectivar a acção humana como o resultado da capacidade do sujeito agir, condicionado por estruturas que balizam e condicionam essa acção. Os cientistas sociais não são consensuais nesta matéria. Para uns as estruturas são determinantes, para outros, pelo contrário, tudo é construído pela interacção dos sujeitos. Na sua permanente procura de sínteses, Giddens concebeu uma dualidade da estrutura, em que esta de certa forma constrói a acção do sujeito, mas por seu turno é transformada pelo próprio sujeito dotado de agência (nem tudo é negrume no reino da Sociologia). Mas que pensar de situações em que todas as condições parecem estar reunidas para que algo aconteça, mas não acontece? O sujeito é cego? Ou carece daquela energia de activação de que me falava um amigo, explicando-me o porquê de não praticar desporto? É o mesmo que explica que um mestrado não ate nem desate ou que um país não ponha em prática a liberdade que conquistou?





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