Quentinho, muito quentinho...


Depois de algum receio e estranheza inicial, a Micas está rendida aos encantos do aquecedor. Como qualquer gato que se preze, quanto mais quente melhor!

Personagens à procura de uma história #3

New look 3.0


O Ano da Orquídea - versão 3.0

O Ano da Orquídea - versão 2.0

A necessidade de actualização do html do blog, resultado do recente upgrade do Blogger, levou-nos a reformular a Orquídea e a entrar de "cara lavada" em 2007. Deu bastante trabalho porque o tal upgrade complicou bastante o código html e os meus conhecimentos nesta área são um pouco limitados. Espero que gostem do resultado! Os comentários e sugestões são sempre bem vindos.

O mapa que me anda a tentar...


É no próximo sábado. Anyone?

Consoadices


É difícil processar as informações que nestes últimos dias se foram degladiando com a orgia pantagruélica de comida cujas sobras ainda alimentariam um regimento. As sobras, por sua vez, resultam da periclitante auto-disciplina imposta pelo efeito de culpabilidade incutido pelos discursos da saúde e da estética, nesta altura tão ruidosos como os que apelam ao consumo desenfreado. Feitas as contas, não se passou mal. Major Tom e seus papás, sem marido, irmã ou sobrinhas, retomaram o fio da conversa que se foi esbatendo em deterimento da polifonia colectiva dos jantares semanais. A noite terminou a socorrer o cunhado que, talvez por achar que no Natal os automóveis circulam a água benta, deixou o depósito ficar sem gasolina e se arriscava a passar a noite numa saída da auto-estrada
Passou o dia, já está tudo de estômago recheado e consciência tranquilizada. Já podemos voltar à vida real?

;)

Quem já não se confrontou com uma situação destas?

Pouca terra pouca terra

Só recentemente me tenho vindo a aperceber da dimensão do problema da baixa taxa de conclusão das pós-graduações. Eu próprio faço parte do problema, sinto-o na pele, e como tal estou mais sensível à esta realidade. Seguramente não faltarão motivos para explicar o fenómeno, penso que se trata de uma questão complexa e difícil de equacionar de ânimo leve. Os meus motivos não são seguramente universais, e vou ficando com a sensação que entre os alunos, os professores e as instituições se vai driblando uma culpa que ninguém quer assumir e que apenas vai servindo para protelar os prazos até estes deixarem de fazer sentido (frequentemente depois de as próprias investigações se terem dissolvido na inércia).
Por isso foi com prazer (e correspondente ansiedade - nessa sim, já somos todos pós-graduados) que recebi a notícia de uma convocatória do meu mestrado. Hoje ainda exalo o momentâneo estado de graça do encontro, onde recebi um doseamento perfeitamente equilibrado de repreensão e encorajamento. Sinto que estou dentro de um comboio parado, à entrada de um túnel longo e obscuro; já temos os provimentos e o combustível, a maquinaria está carburada, e até parece que se entrevê aquela luzinha lá ao fundo. Só falta o aviso de partida.

Conjugalidade promocional

Alguns senhores juízes deviam ter vergonha na cara ao proferirem declarações desta natureza. Revelam uma completa ignorância da Lei que nos rege e, por consequência, uma falta de competência profissional (vá, toca a reler o art. 13º).
Com que então não pode haver crime de violência doméstica entre casais do mesmo sexo, por não existir "um caldo sociológico" de "relação de superioridade física do agente em relação à vítima" e por não haver casos de conjugalidade entre pessoas do mesmo sexo?! Hello?!?! Em que mundo vivem?! Saiam dos vossos gabinetes!!
E ainda por cima concluiem que "a protecção da família enquanto composta por cônjuges do mesmo sexo tem um notório - e apenas esse - valor de bandeira ideológica, uma função, por assim dizer, promocional".
Não sei porque ainda fica estupefacto com este tipo de afirmações!

Ou, em alternativa, para gostos mais sensíveis...


Bus ride and flowers in her hair, de Asaf Agranat (Reino Unido), poema minimalista em competição na última edição do Cinanima.

O ocidente do oriente

O ocidente e o oriente são construções feitas a partir de discursos e de olhares. Como tal, podem ser reformuladas e reapresentadas de forma diferente. Aos que acham que dessa reelaboração não pode surgir nada de novo, aconselho o visionamento deste clip, cortesia do YouTube.

Bolo de sábado


Em equipa (ou é cavalo?) que ganha não se mexe: pela terceira vez na mesma semana preparo um bolo de licor para um jantar com amigos. Aproveito o conteúdo de uma garrafa em que ninguém parecia interessado e sempre é uma tarefa simpática para um sábado gélido. Havia uma daquelas luzes que aquecem a alma na corrida matinal entre a Ribeira e o Castelo do Queijo, onde depositei a semana inteira. Com a gata ao colo a apreciar Devendra Banhardt (It's simple, we don't wanna kill...), controlo o relógio. O bolo já deve estar.

O grande tanque

Só o profundo azul da piscina me reconcilia comigo e me dá tréguas na batalha que travo com as minhas inseguranças no trabalho, nos estudos ou nos olhos nos olhos. Gosto de ser o único no grande tanque que mergulha e experimenta a breve e solitária quimera da outra dimensão.

Uma boa notícia e mais trabalho por fazer

A ILGA-Europa, juntamente com com dois dos seus membros - a LBL (Dinamarca) e a LSVD (Alemanha), ganhou o estatuto consultivo no concelho das Nações Unidas, algo pelo qual já se vinha a lutar há vários anos. Pode tratar-se de um novo patamar de batalha e é indubitavelmente um reconhecimento merecido por uma das lutas mais justas que me ocorre lembrar. Ao mesmo tempo, está a circular uma petição dirigida precisamente à ONU no sentido de aumentar a pressão internacional para a descriminalização universal da homossexualidade. A petição já foi assinada por figuras mediáticas como Meryl Streep ou o português José Saramago e por organizações de todo o mundo (com pouca mas significativa presença africana e a ausência asiática). É para assinar e divulgar aqui.

Personagens à procura de uma história #2

Bazar de Natal

Começou hoje o Bazar de Natal da Casa da Animação. Até dia 23 de Dezembro poderão fazer aqui a vossas compras de Natal. Ilustrações originais, objectos de autor, dvds e brinquedos são alguns dos artigos que poderão encontrar. 20% das receitas revertem para a favor desta instituição. Boas compras e, já agora, aproveitem para ver alguns dos filmes que passaram no Cinanima.

Horário do Bazar:
das 14h às 19h30 (seg a sex)
das 14h às 21h30 (sab e dom)


Morada:
Rua Júlio Dinis, Edifício Les Palaces, 208-210 - Porto

Miss B. at the beach


queremos capitanear, mas restam-nos escombros
uma voz já bastou, mas somos indizíveis
perdemos o olhar num vidro ensolarado
e brincamos para desougar o pensamento
para terminar
quebremos de novo o ritmo do compasso

Cat Power na Batalha


A noite prometia tudo. E a figura esbelta e cambaleante em cima do palco deu tudo. Embriagada, Chan Marshall embriagou-nos, e ofereceu-nos um concerto pouco profissional mas superlativamente sentido, como já não se faz.

Momento alto: preparada para atacar um solo de piano (onde entre outras atacou este arrepiante 'I don't blame you'), Chan Marshall, a mulher do palco, afirma que Chan Marshall, a verdadeira, está escondida nos bastidores. Aparentemente estava grávida... de Bob Dylan, mas não é suposto divulgar. Enfim, para mais tarde recordar...

Entre invicta e augusta II

Voltei a Braga para um colóquio sobre sociologia da educação. Os minhotos parecem apostados em levar lá toda a gente que lhes permita aprender algo de novo. Desta vez, um peso pesado: o argentino Carlos Alberto Torres. Infelizmente cheguei tarde, apenas a tempo de o ouvir falar da importância de questionar o conceito corrente de cidadania, presente no título do encontro, e da necessidade de 'ouvir' os novos movimentos sociais, os mensageiros de um novo modelo ético e moral, assim como de interligar teoria e experiência no percurso do conhecimento. Tudo para, como disse citando Paulo Freire, ajudar a criar um mundo onde seja mais fácil amar (nada mais cativante para ouvir no início de uma manhã chuvosa). Depois ainda ouvi a Luiza Cortesão, que amadrinhou algumas sessões interessantes no meu mestrado, a reafirmar que devemos caminhar para encontrar uma justiça cognitiva, pré-requisito essencial se quisermos pensar a sério em qualquer ideia de justiça social. Para ela, isto implica pensar a educação com olhos diferentes, alertas ao daltonismo cultural que tem atravessado as nossas salas de aula, ou seja fornecer uma cultura operacional, sem esmagar as raízes culturais e conhecer a realidade através de uma prática, ainda que tacteante, de investigação-acção.

Entre invicta e augusta

Uma semana de férias... do emprego. Acho que a ideia inicial era alinhavar coisas do foro académico, mas isso ficou para outras calendas. Aproveito para uma dobradinha na bracara augusta. Em representação da ILGA, participei num colóquio organizado pelo curso de Sociologia da Universidade do Minho. Ocasião para tentar cumprir o meu papel e relembrar também o meu próprio percurso em frente a uma plateia de jovens imberbes mas ainda assim aparentemente interessados (a avaliar pelo debate que se seguiu). Falou-se das dinâmicas e contradições entre perspectivas essencialistas e construtivistas em relação às questões LGBT. Procurei destrinçar um caminho que evitasse visões simplistas, mas nisto de falar com novatos nas matérias há sempre que recuar em linguagem e reflexão (senão também não tinhamos lugar ali, é verdade). A ideia era tentar sensibilizar aquela juventude, massa crítica em potência, para a necessidade de explorar e conhecer realidades provavelmente pouco exploradas na sua formação e alertar para a importância de utilizar e até conceber novos instrumentos para as analisar. Falamos, ouvimos, trocamos ideias. Não era assim que devia ser sempre?

Personagens à procura de uma história #1

Armem por favor as armas do amor*


Perfeito para quem se desculpa com o tempo que demora. Disponível para já na África do Sul, aceitam-se sugestões para uma versão nacional: Tá a andar, Semp'a abrir, Bora lá, Já está, E mai nada...

* Sérgio Godinho

O horror! O horror!


São as últimas palavras numa narrativa de viagens, “O Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, que acabei de ler. É um texto do início do século passado, mais tarde reabilitado pela adaptação (bastante livre e re-situada na guerra contra o Vietname) de Francis Ford Coppola no épico “Apocalipse Now”. É impossível, portanto, não imaginar a figura portentosa e decadente de Marlon Brando no seu último papel digno, o sinistro e misterioso coronel Kurtz. Trata-se de uma história sobre as trevas obscuras da perfídia e ambição humana, que conquistaram o seu aspecto mais hediondo no sonho totalitário do colonialismo (em todas as suas formas). O narrador é o homem a quem encomendam o resgate de um posto colonial, e é com ele que iniciamos a primeira das duas viagens: pelo grande rio acima, de um mundo para o outro. A segunda das viagens é interior, e acontece ao mesmo tempo, com a aproximação ao destino. Kurtz está no fim da linha. Vive no coração da selva, longe da civilização que o mandatou. Embriagado pelo poder, enlouquece, acabando por morrer como se um cancro o consumisse, esse mesmo horror com que se confronta antes do último estertor. Ao ler o livro, imaginei estas últimas palavras libertadas num grito lancinante, como um aviso à humanidade. Coppola e Brando optaram por um sussurro. O horror... o horror... Como se vencidos pelo medo que esta revelação abrisse uma nova caixa de Pandora, ou simplesmente porque num mundo ruidoso e bélico, o silêncio se tornou ensurdecedor.

Fez-se silêncio


de profundis amamus

Ontem às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
é há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso

Mário Cesariny - Pena Capital, 1957

Kate Bush: Army Dreamers

Do bloco


Por muito que batalhe com as cores e com as formas, regresso sempre à linha preta e às caras que dizem ser auto-retratos. O último traço foi nas férias de Verão e o bloco já reclama.

"Dans Paris"


Houve um tempo em que o cinema se fazia e via dentro de uma sala grande, com uma tela e um projeccionista. Os filmes serviam para divertir mas também pensar, e colecionávamos os nomes dos realizadores e actores como quem coleciona cromos. É da memória desse tempo que parece vir "Em Paris", um pequeno filme que passa na simpática sala Estúdio do Teatro do Campo Alegre (já ir ali é como respirar ar puro, comparando com os espaços onde nos obrigam a ver cinema nos últimos anos). O filme tem uma história, com drama, sofrimento, mas também momentos cómicos ou simplesmente lúdicos. Enfim, tem sentido de auto-ironia. E sobretudo tem muito bons actores (aquele Louis Garrel, depois deste e d'"Os amantes regulares" parece mesmo a reincarnação do Jean Pierre Léaud), uma banda sonora feita de jazz e rock, uma montagem pouco linear (cheia de analepses e prolepses), e um narrador com a distinta lata de interromper a acção e falar directamente com o espectador. Já vimos isto nalgum lado? Já (até já vimos esta cena de cama com o mítico par Belmondo-Seberg), mas sabe bem voltar a ver adultos a brincar nas ruas e nos quartos de Paris, e sobretudo ver um cinema que não nos trata como imbecis.

Ir dizendo


Da indizibilidade do ser até à vontade de dizer algo vai às vezes uma pequena mas eloquente distância. Nestes dias de interregno, aconteceu-me a fase final da malfadada formação para renovação do CAP (essas extraordinárias inutilidades burocráticas que obrigam meia dúzia de tipos a aturarem-se uns aos outros durante 60 horas e no final irem jantar juntos para simular uma cumplicidade inexistente).
Também aconteceram duas belíssimas sessões do Cinanima, esse injustamente olvidado festival de cinema de animação que acontece anualmente na cidade de Espinho, onde se percebe que o cinema precisa urgentemente de novas linguagens, com a furiosa inteligência criativa destas pequenas obras-primas.
Começou a circular um abaixo-assinado para a criação de um movimento pelo sim no referendo sobre o aborto, onde surpreendido encontrei o nome da Agustina Bessa Luís como signatária. Faço correr o dito e abro discussões onde pousa a folha.
O Ministério da Educação decide tornar público e oficial o alargamento do processo de reconhecimento e validação de competências ao secundário. Apreensivo, estudo os documentos e interrogo-me sobre a capacidade dos próprios certificadores mediante os critérios apresentados.
A terminar a semana, uma visita por convite a um dos novos espaços de 'realidade paralela' urbana do século XXI: os grandes ginásios urbanos. Entrei, experimentei uma ou duas dessas modalidades com nomes ingleses, pacotes de exercícios repetidos resultantes do mix de várias modalidades já existentes, patenteados e franchisados às novas catedrais onde se presta culto a corpos já suficientemente tonificados. O espaço é agressivamente concentracionário; todos os movimentos são controlados por cartões, fechaduras, códigos, inscrições em modalidades; somos conduzidos por setas, instruções, circuitos e uma música enjoativa e omnipresente. Nas sessões grupais, um tom de uníssino que me põe desconfortável.
Respiro fundo. Porque hoje é sábado.

A Micas flash!


Como podiamos ter resistido a este anúncio?! Três meses depois de ter vindo cá para casa estamos completamente rendidos aos seus encantos! E penso que ela não estará menos rendida, a contar pelo volume sonoro do seu ronronar quando vem para o nosso colo a pedir mimos. :)

Encontrei um site...


... que quero partilhar. O som poderá ser familiar e dar vontade de fechar os olhos. Mas isso era perder metade da piada. A curiosidade pode ser satisfeita clicando no meu homem-cão ou no nariz do Walt Whitman, que se cruzou comigo várias vezes neste ano.

Serra da Freita: caminho para Drave

Naturalmente perverso


Olhar a realidade humana com o mesmo olhar com que se analisa a realidade animal ou biológica é um caminho tentador, mas sempre perigoso. Num dos meus filmes preferidos - "O meu tio da América", Alain Resnais ilustrava de forma eloquente as possibilidades dessa ponte, no melhor de todos os tratados sobre a etologia social. Edward T.Hall, num ensaio famoso - "A Dimensão Oculta", também propunha uma grelha de leitura das relações sociais de acordo com as implicações do relacionamento entre indivíduos num determinado espaço, utilizando conceitos como a distância de fuga, herdeiros da concepção territorial no estudo dos predadores e das espécies em geral no reino animal. De acordo com esta leitura, as 'anomias' vividas nas grandes cidades poderiam ser explicadas pela transgressão das distâncias necessárias entre indivíduos, constrangidos a habitar no mesmo espaço limitado. Os perigos de uma observação que parta deste pressuposto são muitos (na obra referida, e bem ao estilo desta corrente, Hall faz interpretações rebuscadas e abusivas de factos sociais avulsos de forma a corroborar a sua teoria), sobretudo porque esta analogia faz parte de um discurso de senso comum que frequentemente procura legitimar hierarquias e estabelecer estados 'normais' e 'naturais', contra formas 'patológicas' ou 'desvios' (hetero versus homo é sempre um bom exemplo). A proxémia, contudo, pode ser uma interessante alavanca de reflexão, porque alerta para o facto de que espaço, tal como a linguagem ou o poder, deve fazer parte da equação (no Ártico existem dinâmicas que necessariamente não acontecem em Marrocos). Importa é que não fiquemos indiferentes à complexidade das interacções que compõem mesmo os mais 'pequenos' fenómenos do quotidiano, como uma conversa com um desconhecido ou a forma como nos dispomos em torno da mesa para jantar.
Imagem: 'Chris'(1979), de David Armstrong

Pequenos grandes momentos de BD


in "Super Paradise", de Ralf König (2005: Barcelona. Ediciones La Cúpula)

Brave new world


"Os deuses são justos. Sem dúvida. Mas o seu código de leis é ditado, em última instância, pelas pessoas que organizam a sociedade. A providência recebe a palavra de ordem dos homens". Rezava assim um dos últimos diálogos no "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley. Num futuro dominado pela tecnologia e pela racionalização de toda a vida social, económica, cultural e sexual, fazia sentido que Jesus Cristo fosse substituído por Henry Ford, como referência transcendental e fundadora (no livro, o ano zero passou a ser considerado o ano em que foi criado o famoso modelo T da fábrica de automóveis Ford, o tal que inaugurou a primeira linha de montagem da história da indústria). Tendo sido escrito nos anos 30 como um vigoroso alerta contra os perigos dos totalitarismos que viriam a mudar a face do planeta pouco tempo depois, a obra não perdeu qualquer pertinência neste ano de 2006 D.C., incluindo nessa mesma reflexão sobre o divino como manifestação do pensamento humano e da sua contemporaneidade. O divino somos nós, na nossa sordidez, mas também na nossa magnificência (que melhor exemplo do que o concerto que Jordi Savall e os seus Hespèrion XXI ofereceram na Casa da Música no passado Sábado?).

Melodias para adultos

Assisti ontem na Casa da Música ao espectáculo The Last Nomads of Rajasthan, uma espécie de wonder team da arte nómada indiana. Trata-se de um colectivo colorido e multifacetado composto por bailarinas, percursionistas, tocadores de cítares, tímbalos e outros instrumentos para mim desconhecidos e ainda um divertido engolidor de facas. Pelo meio, dois bailarinos drag e movimentos sensuais distribuídos por ambos os sexos, num ambiente com cheiro a insensos e tabacos exóticos.
Mal recuperado, despertei esta manhã para mais um seminário profissional, onde voltei a ouvir a Olívia Santos Silva, uma das fundadoras do modelo actual de educação e formação de adultos, falar sobre a importância de respeitar a especificidade de cada indivíduo e da muy 'freiriana' capacidade mobilizadora contida no processo de conscientização a que este (idealmente) se presta com a mediação dos técnicos nos processos de reconhecimento de competências. Mencionou ainda en passant a inevitabilidade da integração territorial das estruturas já criadas neste âmbito, ou seja, a necessidade de ligar os processos de educação e formação à envolvente local do próprio adulto.
Não consegui evitar pensar que o texto que os adultos constroem para demonstrar o seu percurso necessita de um olhar que reconheça os diferentes 'territórios' que permitiram a sua vivência, tal como a bailarina reconhece o ritmo e melodia como realidades suas, e sabe, como tal, identificar o momento certo em que deve iniciar e terminar o movimento da sua dança. Não se trata de um capricho. O meu ouvido está educado para 'entender' melopeias e compassos ocidentais, estruturas de que a música indiana tradicional se desvia de forma significativa, estabelecendo o seu próprio ambiente sonoro. Se entro num novo 'território', eu posso ouvi-lo e contempla-lo, mas não posso nem devo fazer de conta que o sei descodificar.

Marie Antoinette II

Esta música não me sai da cabeça pelo segundo dia consecutivo...

Marie Antoinette


Uma prisioneira num palácio. Um trabalho notável de reconstituição, de elaboração barroca, com imagens deslumbrantes (algumas mesmo sublimes) e enquadramentos que reconstituem na perfeição o imaginário pictórico da época. Todo o cenário, apesar de real, funciona como uma abstração: mil olhares vigiam os mínimos movimentos da rainha adolescente, joguete maior da encenação decadente do fim da velha ordem. As crianças são pequenos adultos, como muito bem observara Phillipe Ariès. A música, entre as composições de época para orquestras de câmara, e os sons urbano-depressivos dos New Order ou dos The Cure, insere-se no cenário e comenta a narrativa. Um filme arriscado (em todos os sentidos, sendo a ausência de 'comentário político' o mais evidente), mas quanto a mim conseguido, desse valor seguro que começa a ser a assinatura da Sofia Coppola.

Literatura aos molhos

O aniversário de uma ex-namorada que se tornou amiga é sempre um bom pretexto para um reencontro anual. Aproveitei a proximidade do Corte Inglês e lá fui espreitar a secção dos livros. Nos escaparates, a habitual panóplia colorida de best sellers e lançamentos de Outono para rápida digestão. Pelo meio, alguns poucos clássicos. Retirei um Jorge de Sena e uma voz ao meu lado disse "prefere os clássicos? Já leu o último dele? Aliás o único romance, Sinais do Fogo? É um excelente retrato da época do fascismo". Anui com um sorriso amarelo, ao perceber que se tratava do funcionário da secção, vestido como um funcionário bancário à caça de clientes. "Mas esteja à vontade". Dei a volta ao escaparate e desta vez retirei um da Agustina, cujo título não conhecia. "Ah, o último da Agustina! Normalmente ela tem um estilo rebuscado, há quem não goste. Desta vez ela procurou fazer algo diferente, interessante". Incomodado, voltei a pousar o livro. Não queria acreditar que me estavam a tentar impingir livros, como quem vende um crédito imobiliário ou um colchão ortopédico. A medo, e um pouco precipitadamente, escolhemos o último do Luis Sepúlveda e fomos pagar. Ainda receei, por instantes, que ele acrescentasse algum comentário, do estilo: "É um escritor que alia o domínio da tradição do conto com a consciência social, um belíssimo representante da expressão escrita latino-americana. Uma excelente escolha!". Mas o homem de gel e gravata, como uma caneta na mão, apenas comentou, com um ar pouco entusiasmado e num tom desanimado: "Perderam foi a sessão de autógrafos". Duvidei seriamente que tivesse alguma vez lido qualquer dos livros.

Luiz e a comunidade


A propósito de um documentário reposto pela RTP sobre o Luiz Pacheco, relembrei-me do deslumbre arejado que foi ler textos como os "Exercícios de Estilo" ou "A Comunidade" na minha adolescência tardia. Pensei que era uma pena que o Luiz estivesse confinado a um lar há vários anos (o MC não lhe financiaria uma transfusãosinha de sangue, de preferência de uma lolita de colégio ou de um magala rural perdido na cidade?). Ele teria certamente uma opinião prosaica a propósito desta questão do Rivoli, qualquer coisa onde adiantasse que se andam a f##r a cultura, esta está bem na altura de mandar a autarquia à merda (uma tirada que recolocaria o neo-abjeccionismo na berlinda). Provavelmente acrescentaria qualquer coisa acerca das várias putices que outros supostos arautos da cultura andam a engendrar, em alegre e lucrativa prumiscuidade com o mercado (como daquela vez em que denunciou que o Fernando Namora tinha plagiado um texto ao Virgílio Ferreira). Quem não tem papas na língua que avance, por favor. Estamos fartos de chafurdar.
Ilustração de Alice Geirinhas.

à chuva

Não devo ser o único, mas sinto que cada hora (e já foram muitas) enfiado dentro de um automóvel numa fila de trânsito me suga alguns meses de vida. Tenho tentado reduzir a utilização a um mínimo indispensável, como nas deslocações a outras cidades (sobretudo quando não servidas pelo comboio). Mas as três horas que passei hoje à entrada da A3, que me obrigaram a desmarcar um compromisso com 22 fafenses que esperavam por mim à chuva, revestiram o acontecimento de novas proporções. O que me deixa perplexo, agora que já acalmei, é a capacidade que temos para gerar raiva de uma forma irracional, não focalizada e em quantidades épicas nestas situações. Só mesmo o teu sorriso, já quase adormecido, depois de pacientemente ter aconchegado a gata, e quase dentro dos lençóis, é capaz de dissipar a tempestade e redimir o absurdo quotidiano.

Two to tango

- "Estás a avançar pouco!!"
- "Tu é que não dás as indicações!!"
- "Dás oitos demais!!"
- "Deixa de olhar pró chão!!"
- "Tens que ouvir a música!!"
- "Não me puxes!!"
- "Não me empurres!!"
- "Não me ouves!!"
- "Não te explicas C##!!"
No tango existem os pares-pares e os pares-casais. Eu e o Planeta Ju pertencemos à primeira categoria. Somos os únicos que não discutem, e rodamos pelo salão, divertidos na mímica do matrimónio heterossexual, a mais imperfeita e rebuscada criação teatral que o génio humano concebeu.

Novos sabores da estação

Nos últimos dias, há coisas que me têm deliciado...

Charlotte Gainsborg - 5:55

(The operation)


.. que me têm surpreendido...

Caetano Veloso -

(Deusa urbana)


... ou que simplesmente me têm obrigado a parar.

Bonnie 'Prince' Billy - The letting go (deste álbum, em baixo: "Cursed Sleep")

O gato chileno

Luis Sepulveda, esta noite, na Biblioteca Municipal de Matosinhos, a pretexto do lançamento do livro mais recente - O Poder dos Sonhos (fez logo questão de sublinhar que não se tratava, apesar do título, de um manual de auto-ajuda), relembrou-nos a necessidade de reabilitação da ética na vida social, cultural e política das sociedades actuais. Dessa necessidade, e por se considerar cidadão antes de escritor, nasceu esta obra não ficcionada (pelo menos formalmente), como resultado de um conjunto de reflexões sobre o estado da sociedade chilena e dos seus percursos. O auto também sublinhou eloquentemente, naquela forma quente e cativante que a sua voz destila, a importância do encontro entre culturas como algo de enriquecedor (ele próprio é neto de dois espanhois, uma do País Basco e outro da Andaluzia, de uma italiana e de um índio do Paraguai). Foi dessa convicção, aparentemente, que nasceu a história de um certo gato que, ao perceber que não podia ser como uma certa gaivota, aceitou essa diferença e dela fez um objecto de paixão.

Ideias para short stories

Não há mesmo melhor ficção que a realidade. Quando me dou ao trabalho, divirto-me a registar pequenas ideias, observadas em jornais, na televisão, em conversas ou à minha volta. Ficam alguns exemplos:
- foi celebrado um casamento entre dois mortos, agendado pouco antes do assassinato da mulher, que estava grávida, e o subsequente suicídio do homem.
- se existisse um museu imaginário com todas as obras de arte roubadas ao longo da História, ele albergaria, entre outros, 541 Picassos, 147 Rembrandts, 209 Renoirs, 3 Vermeers, Caravaggios, Van Eycks e Cézannes.
- um homem foi descoberto pelos próprios credores, morto há dois anos, em frente a um ecrã de televisão.
- um carteiro descobre na casa de um carpinteiro a quem vai entregar a correspondência a porta do seu próprio quarto de infância.

Os dados estão lançados. Agora é só ter tempo e engenho para explorar as consequências.

O (Re)Nascimento de Vénus...


...d'après Major Tom.

Planeta identidade


Era uma leitura adiada há já algum tempo, ontem terminada com a gata ao colo e sob o aconchego de um Sol de fim de dia. Amin Maalouf, jornalista e escritor, natural do Líbano e residente em Paris, de formação eclética e defensor da miscigenação, escreveu este pequeno ensaio sobre o poder opressor das identidades, em jeito de apelo humanista à desconstrução do ódio entre culturas. Os princípios básicos de "As Identidades Assassinas" são simples: caminhamos para a proliferação exponencial das identidades fronteiriças, e somos o resultado de um compósito de pertenças identitárias (entre outras coisas sou português, mas também europeu, homossexual, sociólogo e portuense, e cada uma destas facetas é realçada de acordo com a situação em que me encotro). Neste cenário, a política deve ser algo que parta da indiferença ou indistinção das pertenças identitárias dos indivíduos e colectivos. Devemos para tal procurar estabelecer o postulado da reciprocidade dos contactos culturais. Em democracia, nem maiorias nem minorias devem ditar a lei. O cimento deve ser o respeito fundamental por todas as configurações identitárias, desde que salvaguardados alguns direitos humanos básicos. Apenas deste modo se pode combater, sob o signo da mundialização, o risco de uma uniformização hegemonizante de uma cultura sobre todas as outras ou a violência do choque entre as tribos planetárias (religiosas, políticas ou culturais), caminhando simultaneamente para uma ideia de universalidade, alimentada pela infindável riqueza da diversidade de patrimónios da humanidade.
Desenho da Mimi.

Anita no divã


Se existem denominadores comuns numa geração, daqueles que despoletam conversas a partir das duas da manhã em qualquer bar de qualquer cidade portuguesa, um deles é a remissão para alguns universos da infância, esse inesgotável baú de nostalgia e redescoberta individual e colectiva. O facto de quase todos termos lido as aventuras da Anita, essa que agora completa 50 anos de história, é um bom exemplo. É difícil descortinar o que tanto nos cativava nessa pequena (em vários sentidos) e assexuada personagem que habitava o nosso imaginário. Talvez fosse em parte a escassez de ofertas alternativas, mas também a sedutora puerilidade e a escapista capacidade de gerar fantasias a partir daquelas imagens. Hoje em dia não encontramos facilmente homens que admitam francamente ter lido e relido aquelas páginas(mas que os há, há), em contraste com as mulheres, outrora meninas para quem a publicação parecia exclusivamente concebida. Não havia nada de pedagógico, nada de 'evolutivo' na definição da personagem. Apenas as imagens, docemente anacrónicas e de uma magia académica mas eficaz, que ficaram gravadas no início do nosso crescimento.

Fotos


Vale a pena estar atento: há duas exposições fotográficas potencialmente interessantes em cena: a de Paulo Nozolino, sobre o universo cigano, na Quadrado Azul, no Porto, e uma outra que veio com destaque na revista do Notícias no último Domingo, sobre o curioso trabalho de uma associação que tem como objectivo ajudar a encarar a chegada da morte. "O trabalho foi realizado durante várias semanas em diversos hospitais, acompanhando doentes terminais que sabiam que iam morrer em breve." O resultado pode ser visto no Museu da Água, em Lisboa, até ao dia 21 de Outubro.

Bota feriado

Enquanto forma de celebração ou mecanismo de manutenção da memória de um colectivo social, os feriados nacionais valem o que valem. No nosso país, o peso atribuído às efemérides católicas diz bastante da violência monocultural que continua a vigorar num Estado supostamente laico.
Proposta pessoal para nova agenda de feriados:
A manter:
- o 25 de Abril
- o 1º de Maio
A eliminar:
- todos os outros em vigor
A acrescentar:
- 1 de Janeiro (novo ano, novas resoluções): dia do ambiente
- data a definir: dia da luta contra a pobreza e a exclusão social (uma temática específica designada anualmente)
- oito de Março: dia das mulheres
- 1 de Dezembro (a escolha da data evocaria simbolicamente a refundação do país segundo uma nova premissa): dia da mestiçagem cultural
- 28 de Junho: dia do cidadão gay, lésbico, bissexual e transgénero

Profissão: Repórter


Há um momento decisivo no filme Profissão: Repórter (o filme fantasma de Antonioni, três décadas fora de circulação - esta semana em exibição no Teatro do Campo Alegre): é aquele em que a personagem de Maria Schneider se dirige ao homem com quem decidiu escapar, sem saber muito bem de quê, e lhe pergunta precisamente isso - "de que é que tu foges?". O homem, ao volante de um descapotável algures no Sul ibérico, pede-lhe para se virar de costas no banco de trás, e nesse belíssimo plano de uma mulher suspensa a olhar para a estrada que fica para trás, com os cabelos a esvoaçar e os braços abertos, percebemos que é do passado que se fala, esse que o homem já tentara literalmente destruir, fazendo-se passar por morto e assumindo uma nova identidade, esse mesmo passado que nos torna prisioneiros dos papeis (de marido, de pai, de uma profissão, etc) e que arrastamos como um navio arrasta a sua âncora. A Jack Nicholson ficou a tarefa de encarnar o paradoxo da fuga e da incapacidade de fugir, e fá-lo lindamente.

Nós e os outros de nós



Um: o pretexto
Nas raras ocasiões em que decido dar uma nova chance à televisão, os momentos que continuo a preferir são aquela rúbrica 'no comment' na Euronews. São pequenos excertos de filmagens recolhidas em qualquer parte do planeta, onde apenas a data e o local é identificado numa pequena legenda. Nada mais do que vemos é explicado ou comentado, deixando-nos, enquanto espectadores, espaço para alguma margem de interpretação ou simplesmente perplexidade, o que exercita o cérebro antes da inebriante corrente de mensagens pré-fabricadas que se seguirão.

Dois: a analogia
Tentava ontem convencer um grupo de mulheres, todas licenciadas e com experiência de formação, dessa mesma necessidade de um olhar aberto a todas as possibilidades na construção de uma relação (discutia-se a grande questão da partilha das tarefas domésticas, e foi interessante para mim constatar novamente que neste âmbito o grau académico não é uma variável determinante). Nem avancei com o questionamento do modelo da monogamia sexual ou afectiva (podia ter dito que enquanto seres sociais lidamos melhor com a segunda do que com a primeira), mas simplesmente com a própria possibilidade de repensar a conjugalidade como a (in)capacidade de conciliação de universos inevitavelmente distintos e com algumas zonas de intersecção impraticável. Também introduzi o tópico da pressão social para o casal, em detrimento da opção igualmente legítima de viver sozinho (quase ninguém consegue evitar elencar o conjunto de causas e outras tantas estratégias de resolução da situação, apresentada como deficitária e socialmente 'perniciosa'). No final destas discussões, apercebo-me sempre que, tal como o olhar conduzido pelo noticiário televisivo, é mais simples e pacífico encarar a vida como um suceder de eventos que conduzam à realização da norma.

Nostalgias




Stromboli, Junho 2006

Caro diário...


Evidência: é uma semana cinzenta. Não tenho conseguido andar de mota e o trânsito de carro anda impossível. A somar: ontem fui a uma milonga, e mais uma vez não tive coragem para ultrapassar a minha timidez. Fiquei só a olhar para a pista.
Comecei aquela formação para renovação do CAP de formador. Apanhei um cursito financiado, e ainda por cima sobre Igualdade de Oportunidades, e não perdi tempo para me inscrever. A turma são apenas oito pessoas (comigo), e todos formamos aquilo a que na minha rua chamamos uma bela colecção de cromos que está ali basicamente to get over with it. Ainda só tivemos uma sessão de apresentação, mas já deu para ver. Querido diário, hoje vou ter a segunda sessão, e acho que vou ter que sair do armário. Já não tenho estômago para bocas sexistas ou homofóbicas, assim adianto-me e presenteio-os com alguma coisa para contarem em casa. Só tenho que decidir depois em que grupo é que fico: se no dos homens ou no das mulheres.
Será que o céu vai limpar?

A luz de Lisboa...


... é uma luz... boa.

Olhar o olhar

Não são poucos os trabalhos que procuram denunciar a linguagem como uma forma de pensar a realidade de uma forma preconcebida. Ao falar, ler ou escrever, eu remeto para um conjunto de símbolos e significados que não são culturalmente neutros, e advém daí a impossibilidade de conceber, por exemplo, uma investigação totalmente objectiva e imparcial. O preconceito, contudo, é também uma questão de olhar, olhar que é também uma construção em que todos mergulhamos e em relação ao qual necessitamos de reflectir de forma permanente (ou seja, não basta constatar que existe um pré-olhar para que ele deixe de existir de modo definitivo). É o que pode acontecer com uma visita ao Centro de Português de Fotografia, onde ainda se pode ver a exposição "África pelos africanos", simplesmente uma colectiva de fotógrafos africanos que nos apresenta uma pequena colecção de olhares do século XX (a provar que os movimentos sociais não só uma questão de voz, mas também de visão). Há uns anos atrás, também um clip de uma banda britânica deu que falar e fez-me pensar, pela eficácia com que conseguiu expor o modo como o nosso 'olhar de género' se apropria da realidade. Para os que não conhecem, um aviso à navegação: não devem ver no local de trabalho.

PS: o "Smack my bitch up" do título e do refrão é uma expressão de palco que quer dizer basicamente: 'vamos a isto!'

Eduquem-se!


Passei uma boa parte de um dia de azáfama num seminário com o pouco auspicioso título 'Aprendizagem ao longo da vida'. É engraçado perceber como toda a lógica das intervenções está nestas ocasiões impecavelmente montada para se falar do que há a fazer com a escola enquanto conjunto de práticas e objectivos (para combater, por exemplo, essa grande construção discursiva que é o insucesso escolar). Mas nunca, nem por um segundo, se vislumbra a possibilidade de ver a aprendizagem como algo que pode ocorrer fora desse espaço mitificado. E se se vê, a questão nunca será colocada nos mesmo termos, mas antes como uma curiosidade que empresta como que uma espécie de exotismo multicultural aos desvios à norma (essa sim, repetidamente reiterada em tom melodramático pelo elogio do aluno que se adapta brilhantemente ao modelo e que demonstra assim a sua eficácia). À noite, no jantar semanal da minha primeira família, a minha irmã lamenta-se do mesmo, no final da primeira semana de aulas: os miúdos não são mais do que veículos das aspirações e práticas desse grande e inquestionado (re)produtor do saber que é o professor, e dessa implacável máquina de trituração de metas físicas e de propulsão de percursos de exclusão que é o sistema educativo actual.
PS: as orquídeas descem à capital para apanhar o que falta do 10º Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa. Até já.

Correr, correr, correr...


Um trânsito apocalíptico impediu-me de entrar no Porto para a habitual corrida no Parque da Cidade. Frustrado, regressei a Gaia, decidido a experimentar o percurso da marginal até à Afurada. Reticente, estacionei o carro, equipei-me qual super-herói a trocar de identidade, mp3 em acção, e lá fui em passo decidido. Uns metros à frente, já todo eu era entrosamento com a paisagem, um rapaz também a correr meteu conversa. Não consegui evitar alguma desconfiança, afinal de contas vivemos numa cidade. Numa leve desilusão inicial, apercebi-me que o atraente estranho apenas queria conversar. Correr é uma actividade solitária, dizia-me, mas o tempo passa melhor quando se dão duas de letra. Ficámos a saber pouco da vida um do outro, o tema foi a corrida em si: percursos, vantagens ('nunca mais me constipei e ando de manga curta às vezes até no Inverno'), sensações, projectos pouco ambiciosos de correr até não poder mais. Despedimo-nos com um 'até à próxima', enquanto eu refazia o percurso de volta e ele prosseguia na sua meia maratona diária. Prometi voltar a repetir a beira-rio, 'pode ser que nos cruzemos por aí'. Senti-me parte de uma tribo.

À semana a doer...

O autor deste post encontra-se em merecida convalescença, depois de um dia inteiro de entrevistas nessa terra de contradições várias que dá pelo nome de Fafe. Desta amostra, várias mulheres desempregadas das confecções, com famílias inteiras a cargo, indivíduos com o sexto ano de escolaridade e que não conseguem escrever mais do que o nome próprio, e uma mulher com um passado trágico, não tão raro por estas bandas: assistiu à morte acidental da irmã com uma arma carregada e mal guardada. Felizmente as segundas-feiras terminam com uma milonga e boa companhia...

Pépé #2


The boys wanna be her, the girls wanna be her


Deborah Harry, matriarca das mulheres rockeiras: um pé na provocação arty, outro na pura perfomance pop, já com uma grande descendência (ver exemplo de descendência em baixo).

A autarquia mete nojo

Não sei como ainda fico surpreendido por este tipo de notícias. Surpreendido, incomodado e furioso! Não voto no Porto porque não me deixam mas a cidade também é minha! E custa-me muito ver um bando de filhos da p*** a gerir os destinos de uma cidade simbolo dos ideais liberais e democráticos. Já chega de prepotência, de arrogância e mania que são os donos da cidade! Já chega de erros políticos, sociais, económicos e culturais!
Se os senhores eleitores deste concelho ainda não abriram os olhos e viram o erro que fizeram ao votar neste executivo vou pensar seriamente em migrar para outro lado! Com estas brincadeiras vão passar-se 8 anos e a cidade estagnou, regrediu e ficou mais pobre. Basta de ignorância!
Repito, estou furioso!

Volver


Não quero ser mal entendido. Eu não acredito numa essência feminina. Mas gostei muito do novo Almodóvar. Se eu fizesse um filme também gostaria de mostrar um retrato desse universo, o das mulheres enquanto hipótese de comunidade de indivíduos que se encontram e tecem relações nas trevas da dominação masculina, recriando-se e fortalecendo-se muito para além dessa fronteira. Gostava especialmente de mostrar mulheres como aquelas, que carregam às costas de forma tão inseparável o duplo peso da tradição e da emancipação, do lar e do trabalho, a imagem perfeita da modernidade em plena mutação e apanhada nas sua terríveis contradições. Almodóvar sabe que o próprio credo maternal é uma invenção do Homem. Veja-se como tantas das suas personagens adoptam ou são adoptadas por outras, sem qualquer critério genealógico. Essas parecem ser as provas de uma crença mais profunda numa humanidade que não desapareceu, apenas se encontra sufocada pela violência da civilização e dos seus tecidos ideológicos, sendo necessários momentos de ruptura (como os que atravessam as várias narrativas do filme) para ela poder emergir e tornar-se visível. Não é por acaso que a personagem da Carmen Maura é fantasmagórica; ela é realmente o espectro de um tempo que já não existe, em que as fronteiras entre homens e mulheres eram tão simbólicas como físicas (como aquela cortina que os separa na magnífica cena do velório), em que o quotidiano se fazia tanto de cheiros e saudações ruidosas (pequenos momentos altos do filme) como de prepotências e crimes impunes. A não perder por nada deste mundo.

Matinália


A manhã começou tarde, luminosa e lânguida. A cama estava vazia e já se sentia actividade na casa: um teclar descompassado no computador e uma bola a sofrer torturas de gata. Depois do beijo, preparei com paciência e vagar o pequeno almoço e instalei-me com os suplementos do jornal do dia anterior (eia, o Mil Folhas agora sai à sexta!). Bebi dois cafés e troquei olhares com a janela. Decidimos sair. Como já tem acontecido, escolhemos o destino à porta da garagem. Seguimos em direcção ao mar, com livros no tablier. O Sol estava filtrado por um nevoeiro glauco e misterioso, que emprestou à praia uma atmosfera selvagem e sebastiânica. Não se via quase vivalma. Deixei a água revigorar os tornozelos e conversamos sobre as próximas viagens, tema inesgotável mesmo quando não há férias nem dinheiro. Foi o estômago que nos obrigou a regressar. Desta vez cozinhei eu e ele tratou da louça. A gata derrotou um grande insecto.
A tarde ainda não aconteceu.

Pépé: é pró menino e prá menina



Mais duas peças concluídas, em trabalho de equipa: desenho meu, execução da mana em bordado. O resultado? Produções Pépé (a minha alcunha de tio), disponíveis na casa mais próxima... aqui do bairro! Mais exemplares avante...

Refresso a Ítaca


Há projectos adiados que simplesmente nos apercebemos que não vão acontecer. Como ler a Odisseia em verso. Acabei por me ficar por uma versão juvenil, adaptação do João de Barros em prosa do poema de Homero sobre as aventuras de Ulisses, "herói e navegador da Grécia Antiga". Não me ocorre nada mais do que o óbvio para descrever as impressões da leitura da segunda história mais conhecida de sempre (segundo consta). Fico à espera que a minha vida se adeque silenciosamente às metáforas do épico...

A presença de Marisa


Ontem encontrei-me com uma mulher. Primeiro só lhe ouvi a voz. Cantava sobre o seu infinito particular num bréu maternal. De vez um quando, uma luz ténue iluminava o rosto e percebi um violão no seu colo. Depois mudou de melodia e todo o cenário incandesceu de uma luz branca. Rodeava-a uma pequena orquestra, toda vestida de negro. O ritmo era um samba lento, quase uma morna. Cantou e cantou, trocando o violão por um bandolim, e aproximou-se, desafiando a sua própria timidez (ou, nas suas próprias palavras, o seu pernambucolismo). Senti mais uma vez que o espaço era imenso, e que precisávamos de estar a sós, eu e ela. Mas na imensidão daquele círculo percebi dois mil vultos que nos separavam. Saravá, Marisa.

Energia de activação, pró bem da nação

Sempre me pareceu coerente perspectivar a acção humana como o resultado da capacidade do sujeito agir, condicionado por estruturas que balizam e condicionam essa acção. Os cientistas sociais não são consensuais nesta matéria. Para uns as estruturas são determinantes, para outros, pelo contrário, tudo é construído pela interacção dos sujeitos. Na sua permanente procura de sínteses, Giddens concebeu uma dualidade da estrutura, em que esta de certa forma constrói a acção do sujeito, mas por seu turno é transformada pelo próprio sujeito dotado de agência (nem tudo é negrume no reino da Sociologia). Mas que pensar de situações em que todas as condições parecem estar reunidas para que algo aconteça, mas não acontece? O sujeito é cego? Ou carece daquela energia de activação de que me falava um amigo, explicando-me o porquê de não praticar desporto? É o mesmo que explica que um mestrado não ate nem desate ou que um país não ponha em prática a liberdade que conquistou?

Coisas que já soube fazer

- tocar uma partitura de Bach no piano
- peças em macramé
- a esparregata
- partir um ovo sem misturar clara com gema
- jogar andebol
- usar o SPSS
- tolerar a intolerância
...

Já lá vão dez anitos...


Arranca este mês mais um Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa. A sua décima edição! Como estamos velhos! :p
Na minha opinião é, sem sombra de dúvidas, a iniciativa cultural LGBT mais interessante que se faz em Portugal. Só é pena que continue centralizada em Lisboa. Vamos a ver se este ano ainda conseguimos dar uma saltada até lá. Há filmes para todos os gostos, é só escolher.
P.S. - Hum, gostava mais dos primeiros cartazes do festival... É uma delícia ver tantos logotipos de patrocinadores!

Wild at heart


Recordo as imagens e volto a sentir o estômago a pressionar a respiração. Teria catorze anos, já estava habituado a sentar-me sozinho no cinema. Foi no Batalha, por isso sobrava espaço à minha volta e na minha cabeça. Sailor e Lula cantavam e dançavam canções de Elvis e dos Motorhead, na sua sui generis versão de um Verão de amor. Eram perseguidos pela Bruxa má do Oeste (a mãe, na imagem). Os rostos eram os de Laura Dern, Nicholas Cage (difícil de acreditar que é o mesmo, sobrinho de Coppola), Diane Ladd (mãe de Laura, mulher de Bruce Dern, prima de Tennessee Williams), Isabella Rosselini (filha de Ingrid e Roberto, mulher do realizador, à época), ou William Dafoe (homem do teatro). Um clã de nobres genealogias, portanto, reunido sob a estranha batuta de David Lynch, que representa sozinho uma visão de cinema ainda sem descendência e que remete tanto para Buñuel como para George Méliès.
Ecrã negro. Grande plano: um fósforo acendeu em toda a tela, como que a avisar que quem entrasse na história tinha que se preparar para arder com ela. O coração era um selvagem reticente que procurava abrigos onde pudesse combater a sua própria combustão.





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