Outras palavras


Se l'inverno comincia sulle calde
e sporche mani un odore di arance
al quieto sole della festa arde
nell'aria come qualcosa che piange.

Sandro Penna

Ainda sem palavras

Trans...


No dia em que a questão transgender ocupou a atenção dos media em Portugal, pela pior razão, chegou finalmente às salas de cinema portuguesas o filme Transamerica. Já dei uma espreitadela e posso dizer que gostei do que vi. Agora resta-me arranjar um tempinho para ir vê-lo com calma no grande ecrã. De referir que este filme está apenas numa única sala do Grande Porto (lá vou ter de ir às salas do AMC... detesto!!) e que merecia maior destaque. Nem o facto de Felicity Huffman ser candidata ao óscar de melhor actriz justifica uma maior aposta comercial por parte das distribuidoras portuguesas?!

VIGILIA NO PORTO PELO TRAVESTI ASSASSINADO

"Para que esta situação não seja esquecida, para lembrar que a homofobia mata e para revindicar que a homofobia seja incluída na lista de crimes de ódio, Vigília, hoje, sexta-feira, pelas 19,30, no jardim do campo 24 de Agosto, no Porto. Divulga e aparece."

SOS Homofobia

Ela está no meio de nós. É preciso uma tragédia como a do assassinato da Avenida Fernão de Magalhães para que ela seja reconhecida? Alguém ainda se interroga porquê que é tão importante reivindicar a contemplação na legislação sobre crimes de ódio o critério da homofobia ou mesmo a luta pela igualdade no casamento? Vivemos tempos sombrios. Cada gesto de desprezo, cada palavra injuriosa, cada esquecimento, serão como uma dessas pedras lançadas na escuridão covarde sobre um corpo indefeso.

Educar adultos para quê?

Em mais um encontro sobre educação e formação de adultos, Rui Canário encerrou o painel naquilo que me pareceu ser um contributo interessante para ajudar a dissipar a névoa que se foi estabelecendo ao longo do dia. Afirmou inicialmente que neste campo se opera actualmente uma "distribuição de ilusões", ou seja, assistimos a um acréscimo nas iniciativas de educação e formação, mas simultaneamente há uma redução real das ofertas de emprego e uma desvalorização das qualificações. Paralelamente, e não obstante uma insistência particular nas questões da cidadania em contexto de formação, também nos deparamos, segundo ele, com uma institucionalização da anomia dos sistemas democráticos (a crise de representação política e de todo o sistema eleitoral, assim como a adesão a projectos bélicos sem legitimação foram dois exemplos avançados). Ao mesmo tempo, Canário alerta para as perversões discursivas e ideológicas que iniciativas como os Cursos EFA (Educação e Formação de Adultos) ou os Centros RVC (Reconhecimento e Validação de COmpetências) poderão transportar; a chamada de atenção aqui vai para a exposição da empregabilidade como um problema centrado no indivíduo e que como tal poderá ser alvo de uma intervenção para combater esse défice, quando na realidade o que se verifica é um real problema de emprego, que se tenta ocultar mistificando a abordagem. Nesta óptica, estas medidas poderão apresentar-se apenas como meramente paleativas, sem enquadramento. Estamos muito distantes da ideia do toque de flauta como gesto revolucionário, imagem simbólica das experiências de auto-gestão da formação de adultos nos anos 70 (foi evocado o caso italiano). VIvemos sob a tutela de instâncias supranacionais (Bruxelas, Microsoft, etc) que ditam as linhas orientadoras neste campo, que parece perder assim a sua autonomia e o seu potencial transformador. Por fim, foram ressalvadas pela positiva alguns dos projectos apresentados ao longo do dia, que colocaram um acento tónico na ideia da simetria entre o educando e o educador e na aproximação ao local, por via da rede associativa e da integração dos projectos de educação e formação no âmago da negociação, colectiva e democrática, do desenvolvimento.

O mundo de Gao


Uma Cana de Pesca para o Meu Avô, de Gao Xingjian. Lido no Café Progresso. Há coisas assim, como este farrapo num pequena doca de Formentera atravessado pela luz do entardecer que, de tanta simplicidade, produzem em mim... uma furtiva lágrima.

Nico


Não é por ser um segredo bem guardado, mas ajuda. Vozes assim são como bombas que nos atiram para fora dos trilhos, para depois nos devolverem suavemente ao nosso caminho, ainda atordoados mas com a ideia que algo de novo pode acontecer. Nico foi primeiro modelo, depois atriz e só depois cantou. Quem prestar atenção, poderá sentir numa mesma nota um espectro fenomenal de emoções. E depois, é perceber que é alguém que esteve, ainda que de forma discreta em momentos fulcrais da cultura do século XX (dois exemplos: La Dolce Vita , de F.Fellini; The Velvet Underground and Nico, álbum homónimo).

Pedro e a rosa

Um longo corredor circular, vazio. Luz esbatida. Uma silhueta movimenta-se na sombra, junto à parece redonda. São dois corpos enlaçados. O ar está quente e abafado, com uma suave névoa. Por todo o lado, um som tenso e vigoroso, altera o nosso ritmo cardíaco. Ao entrar por uma abertura para o grande salão, o som torna-se mais claro. Na penumbra consegue-se destinguir uma multidão fixada na boca de cena, onde uma figura esguia com o rosto iluminado por um foco se lança num lamento, respaldado por três músicos que se movimentam freneticamente num cenário sóbrio e um pouco lúgubre. O escuro somos todos nós, guiados pela rosa na lapela de Peter Murphy.

PS: o regresso de bandas da nossa adolescência coloca sempre um dilema. Queremos acreditar que são eles que envelheceram, que o som está mais mole e que tudo parece mais encenado. Mas nunca pensamos que a mudança aconteceu também connosco e que talvez precisemos agora de outras bandas sonoras.

Ana da Silva


A minha avó, lá para o fim da vida, era uma pessoa minúscula de tanto a vida a ter mingado. Não me recordo de grandes efusividades na nossa relação. Foi a única avó que conheci e ela parecia mais preocupada em continuar a ser mãe, chegando a designar de crianças os seus próprios filhos, mesmo quando estes já tinham problemas acentuados de calvície e estavam na recta final da carreira profissional. Exceptuando um intervalo de meia dúzia de anos da sua juventude, passados em Lisboa como custureira deslumbrada com o teatro de revista e onde se casou pela primeira de duas vezes, passou os seus dias neste mundo acompanhada pela filha, minha madrinha, uma solteira que lhe dedicara a vida e que a consumira com essa dedicação, na bracara augusta, essa cidade dos sinos repicados cada quarto de hora e de muitas e duvidosas beatices. Recordo-a como uma pessoa um pouco fria e distante, como talvez muitas mulheres da sua geração. Nunca me esquecerei da segurança com que degolava as galinhas, deixando-as por vezes numa correria tresloucada a espichar sangue pelo linóleo da cozinha; ou da habilidade com que elaborava pequenas bonecas de pano ou de conchas do mar, depois vendidas numa daquelas delirantes montras que só existem no Minho, com a mesma dedicação com que assinava o nome sem maiúsculas ou que lia em voz alta o jornal ou as legendas dos filmes nas matinés televisivas. Quando vinha a minha casa, a asma arrastava-a durante pelo menos meia hora pelas escadas acima, e gostava de inventar que existiam lobos e raposas na quinta que ficava em frente, já na altura o único espaço verde de toda a cidade (fui na cantiga até uma idade vergonhosa). Para a visitar, tínhamos que passar pela frutaria na entrada do prédio antigo gerida pela Dona Chêpa, figura popular alvo do desdém da minha tia dada a devaneios aristocráticos. Em casa, gostava de pisar com passos vigorosos o soalho de madeira secular, provocando a vibração de todo o edifício e fazendo tilintar as pequenas figuras de cristal cuidadosamente expostas sobre os naperons bordados, por cima de grandes baús ou ao lado de santuários protegidos por grandes abóbadas de vidro. Comíamos um grande assado ou um sarrabulho, e olhávamos para a rua da varanda lá do alto, com uma vista previlegiada sobre as grandes procissões de Páscoa (como é de bom mote num lar minhoto). Nunca saíamos de lá sem uma grande encomenda de frigideiras, compradas na casa de origem e uma reserva de guloseimas que servia quase à justa até à visita seguinte. Ia com ela ao mercado e pedia-lhe para passar pela Igreja para ouvir o carrilhão. Quando ficava lá, dormíamos todos no mesmo quarto e às vezes a meio da noite ouvia-se o barulho metálico de líquido no penico que escondia debaixo da cama. Depois a cidade cresceu e eu percebi que a minha avó já não pertencia àquele tempo. Quando eu era pequenino, ela era grande. Depois trocámos. Tinha o projecto secreto de apontar os ditos e as lenga-lengas populares, que ela sabia e repetia às mãos-cheias, mas antes de partir a asma cortou-lhe a voz.

Ilustrar(-me)

Num minúsculo anúncio do roteiro cultural do Porto estava escrito: "Workshop de ilustração para crianças com mais de 16 anos". Estranhei, mas pensei que o título não podia ser mais adequado. Empurrado por uma amiga (obrigado) inscrevi-me à última da hora. Acabou e eu, frágil como sou, já sei que vou padecer de saudades destes sábados. Seguem resultados da primeira de quatro sessões (o terrífico mote: o auto-retrato):

Tango (quase) apassionado


No meu intermitante périplo pelas coisas que não têm nada a ver comigo, aceitei o convite de uma amiga para experimentar uma aula de tango. Como previra, é um ambiente nos antípodas de mim, que nunca me imaginara a fazer tal coisa. Senti-me embaraçado e desajeitado, calquei e acotovelei o meu par e outros, senti-me mal vestido e com um ar pateta. Ou seja, já tenho os ingredientes fundamentais que compõem um desafio, aquilo em que me tenho tornado verdadeiramente viciado. Vamos a ele!

Pela diversidade, mãos ao trabalho!

"No âmbito da campanha informativa “Pela Diversidade. Contra a Discriminação”, a UE está a convidar os jovens estudantes de arte e design dos 25 estados-membros a apresentar proposta criativas sob a forma de posters que promovam a diversidade." (ver mais aqui)

Manhã cinzenta e melancólica

A juntar ao habitual estado de humor das 2feiras de manhã sinto que o facto de ontem ter visto o filme dos cowboys, provocou-me uma melancolia maior que o habitual. Julie Delpy e Gustavo Santaolalla fizeram-me companhia nesta manhã cinzenta e fria.


A riqueza do mundo está nos livros. Era uma vez um aristocrata impertinente, que após uma quezília familiar sobe a uma árvore e declara despeitadamente que nunca mais regressará ao solo. A promessa foi cumprida e até ao fim dos seus dias passou a viver lá no alto, pulando de ramo em ramo até paisagens distantes. Querem saber o que lhe aconteceu? No livro, escrito pelo sempre desconcertante Italo Calvino, saberão todas as respostas. Apenas adianto que o rebelde pensador lá arranja maneira, graças ao seu engenho e empenho, de viver a sua vida, ter as suas paixões, colaborar na vida da comunidade, ler, escrever e filosofar sobre a procura da sociedade ideal (sim, porque vistas lá de cima, as coisas cá de baixo ganham outra perspectiva).

Bowie Party


Não sei o que poderá significar nos dias de hoje ser um Bowie kid. Talvez o descubra hoje à noite, no Passos Manuel. Viagens no tempo a cargo do London Boy, Major Tom, The Man Who Sold The World, Ziggy Stardust, Alladin Sane ou Mr. Bowie himself, para se perceber a genealogia de todo o rock, punk, disco, new wave, electro, glam ou pop que se faz nos dias de hoje.
"Who killed Mr Moonlight?"

A escola

Os desafios apresentam-se sempre com um nó no estômago. Convidado pela mana, fui fazer uma pequena palestra sobre sexualidade a uma turma do oitavo ano. O pânico assaltou-me. Não se tratam propriamente de outras idades, são literalmente mundos diferentes dos que estou habituado a visitar com estes temas. No cômputo geral, parece que resultou bem, fizeram-se perguntas, houve muita risada pelo meio (fundamental para dessacralizar alguns tabus) e os cadernos foram-se preenchendo de referências e alguns contactos: puberdade, adolescência, sexualidade, contracepção, género, DST's, orientação e identidade sexual, apoios, etc. Passada hora e meia, a campaínha tocou e despoletou uma verdadeira explosão de pastas, casacos e adolescentes em todas as direcções. É um lugar comum, mas verdadeiro: os catraios (alguns do meu tamanho) têm curiosidade e gostam de falar sobre o assunto; não seria isto só por si motivo suficiente para devolver à escola o papel de saciar a vontade de saber? Quando voltei ao meu dia normal de trabalho, o nó dissolvera-se para dar lugar uma aliviada exaustão. Na cabeça, o eco do grande pátio.

Snobismos...


Só vou ver este filme porque trata-se de uma história de amor entre dois rapazes e porque foi realizado pelo Ang Lee (gosto muito de "O Banquete de casamento", "A Tempestade de gelo" e "Tigre e o Dragão"). Confesso que estes fenómenos colectivos, em que todas as pessoas vão ver o mesmo filme ou ouvem a mesma música, deixam-me um pouco irritado! Pela mesma razão não fui ver o Titanic (outra história de amor...) e porque já não aguentava a música da Celine Dion (e não é que a música não passava no filme?!). Sim, sou snob! :p

"Quero ver Portugal na CEE..."


Parece que os políticos e o povo português só estão interessados no dinheiro que possa vir da União Europeia e estamos a perder a oportunidade de evoluirmos para uma sociedade mais integradora, igualitária e saudável. Ora leiam o que os senhores e senhoras deste país tentam ignorar.

Raimundo & Tom

Soube há dias que se separaram. Era mais fácil para mim conceber que a torre Eiffel fosse oferecida ao Canadá ou que uma baleia fosse vista a passear no parque da cidade. Não é só porque estiveram juntos mais de vinte anos, mas sobretudo porque foram o primeiro casal gay que eu conheci em toda a minha vida. A convivência com eles fez com que inadvertidamente se tornassem um modelo, divertido e acolhedor. Encontrei-os em Turim, onde ocupavam todo um primeiro piso de um típico prédio piemontês (ou seja, um pátio no meio, e a casa a toda a volta, de modo que da entrada víamos a última divisão do outro lado, um quarto). Raimundo era brasileiro e Tom americano, e muito embora tivessem já vivido noutros países (ou talvez por isso mesmo) pareciam conservar ainda uma matriz identitária. Lembro-me de um perú recheado no thanksgiving e de uma feijoada estrondosa com todos os preceitos. Até à data, tinham adoptado quatro crianças: duas delas viviam ainda com eles e os dois mais velhos estudavam nos EUA. Pareceu-me que com a sua partida de Itália levavam toda a alegria da cidade, mais dada a uma sobriedade cinzenta e um pouco austera. Perdi completamente contacto com eles, mas fui sabendo novas por amigos comuns. E finalmente a notícia da separação, como se o tempo fosse uma simples maré da estação, a lembrar-nos da perenidade de tudo, mesmo do que é eterno.

Pas de deux


Nova intersecção da memória (não somos nós feitos de passado?). Cruzo-me na piscina com um conhecido de tão longa data que quase acredito em reencarnações, outrora camarada de copos e fumos. Está sem trabalho há tanto tempo que parece uma vida inteira. Avisa-me que está para sair a publicação de uma prosa poética da sua pena: uma espécie de manual do desempregado. A partir dos textos conta ainda concluir um álbum (também é músico auto-didacta com um CD já editado) e montar uma encenação musical e teatral (na verdade o sucesso na vida é um conceito relativo).
Poucos instantes após, encontro num jornal o nome de Klaus Nomi, o alien responsável por essa fabulosa Cold Song que associarei sempre a um pas de deux numa casa em ruínas em plena Mouzinho da Silveira: ele a descer de umas escadas, iluminado por trás para o escuro da sala, de repente um foco de luz sobre a cara e no lugar da boca uma enorme gerbera. Os vinte anos aproximavam-se, luminosos.

Vida de café

Existe um antes e um depois da vida de café, apercebo-me agora. No desconforto de cadeiras que desafiavam regras básicas de ortopedia e do chão sujo dos wc dos cafés do Porto consegui fazer uma licenciatura e devorar uma bibioteca inteira, ao mesmo tempo que fumava duas toneladas de Camel e meia de Gauloises Blondes (aqueles que o Léo Ferré preferia). Magestic, Guarani, Imperial e Aviz (todos antes das obras de reconversão), Ceuta, Piolho, ou aquele proletário na praia do Homem do Leme, na Foz. Depois assentei, deixei de fumar, terminaram os flirts de olhares penetrantes mas inconsequentes, tudo engolido pela duvidosa boémia de uma sala de estar com aparelhagem de som e DVD. Ficou o eco das conversas e gargalhadas, do burburinho das colheres e máquinas espresso, do corropio urbano docemente encurralado, dos encontros não programados com a amizade. Se a memória fosse um holograma, a minha imagem devia ainda pairar naqueles cantos junto às janelas, onde podia contemplar o mundo de dentro e o de fora, que pareciam o planeta inteiro.
- Era um cimbalino, se faz favor!

Fotografias LGBT

Abro o jornal e observo, antes do título, as imagens que me prendem o olhar. Duas mulheres abraçadas. O Sol clareira por trás o cabelo de uma delas, que fita docemente o olhar da outra. Pensei nesse efeito de luz, no que terá passado pela cabeça do repórter quando escolheu esta foto em particular. Hoje, as duas mulheres poderão fazer História. Naquele olhar também se adivinha a coragem e determinação, ingredientes imprescindíveis para fazer mover a roda dos acontecimentos.





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