Agosto fora do sítio
Agosto entrou nas nossas cabeças, impedindo-nos de postar pouco mais do que nada. São muitos os motivos para não olhar para o computador, e aqui vai mais um. Não seria propriamente a minha escolha e é verdade que a aposta já teve anos mais arrojados (nunca me esquecerei do desconcertante "Os respigadores..." da Agnés Varda, dentro do mercado do Bom Sucesso, à noite e no meio das bancas de legumes e paletes com frutas). Talvez se pense que para cinema popular não se possa pedir mais. Bom Agosto!
A. e B., R.I.P.
Desaparecem na mesma altura, como se viessem do mesmo planeta e uma nave invisível os tivesse vindo recolher, depois de cumprida a sua missão. Antonioni, que comunicou quase sem palavras e com toda a amplitude psicológica dos seus cenários urbanos o enorme vazio da existência humana. E Bergman, por vezes quase verborreico, em grandes planos que nos fixaram na retina Liv Ulmans e Bibi Andersons, em peças de câmara sobre essa grande batalha que se desenrola no interior de cada um de nós, entre a amor e a liberdade, entre a loucura e a abstracção da felicidade, e a dificuldade da ponte com o outro. Houve muito dali que nos fez assim.
Algures na La Drôme...
L´Homme de Sa Vie foi uma verdadeira surpresa. É um filme sereno, onde se sente nos cabelos a brisa quente de verão, onde se mergulha nas águas frescas do ribeiro, se escutam os risos e brincadeiras das crianças, onde se observam os complicados e tão sedutores passos do tango e, entretanto, dois homens se vão apaixonando um pelo o outro. Sem dúvida, é o meu "filme de verão" deste ano!
« parlez-moi d’moi
y a que ça qui m’intéresse,
parlez moi d’moi
y a que ça qui me donne d’l’émoi.
De mes amours, mes humeurs, mes tendresses, de mes retours,
mes fureurs, mes faiblesses, parlez moi d’ moi… »
Etiquetas: cinema
Publicado por Venus as a boy - segunda-feira, julho 02, 2007 à(s) 22:19 0 comentáriosMemórias de celulóide
La belle et la bête, de Jean Cocteau (1945)
"Os Saint-Just de pacotilha verberarão asperamente que a França envie um conto de fadas, neste momento terrível, decisivo, etc., da vida do mundo. Creio ser justo chamar a atenção para o facto de estar mais dentro da vida a fantasia de La belle et la bête que a falseada representação da vida, sobre que roseamente medra o cinema americano ou americanizante."
in Sobre Cinema, de Jorge de Sena (1988, Cinemateca Portuguesa)
En Soap
Um filme dinamarquês em cartaz é sempre motivo pertinente para uma ida ao cinema. Faz-me pensar que se alguma coisa boa veio com o Lars von Triers foi o ter dado alguma projecção à produção cinematográfica deste cantinho do mundo. O filme 'En soap' (traduzido para um obtuso "Sexualidades"), é a estreia na realização da também argumentista Pernille Fischer Christensen, e é uma pequena peça de câmara feita a duas vozes, femininas (questão central), dentro de um prédio indistinto de um subúrbio que podia ser de uma qualquer cidade europeia. Charlotte decide viver sozinha após 4 anos de matrimónio entediante, mas o apartamento desarrumado e as caixas que guardam ainda os seus haveres revelam a sua hesitação e espelham uma agitação interior; no apartamento em baixo vive Veronica, que recebe visitas de homens seus clientes e é fã de novelas americanas (daí o título original, que se aplica também à estrutura por episódios do próprio filme), enquanto aguarda pacientemente pela operação de transição de sexo. Algumas circunstâncias vão permitir a sua aproximação, num agitado duelo de diálogos e corpos que as despe progressivamente dos papeis que desempenham perante os outros, revelando as verdades que ocultavam até de si próprias (e esta é a verdadeira especialidade do cinema nórdico, se nos lembrarmos de Bergman). A novidade surge na abordagem, sobretudo pela forma como os personagens são confrontados com os seus preconceitos e nos 'transportam' para uma reflexão interessante, reveladora do zeitgeist do modo como a solidão, a intimidade e a sexualidade moldam (aprisionam e expandem) a nossa identidade neste início de milénio.
Godard / Anna Karina #3
in Pierrot, le fou (1965)
Etiquetas: cinema, música maestro
Publicado por Major Tom - sábado, abril 28, 2007 à(s) 00:11 1 comentáriosGodard/Anna Karina #2
in Vivre sa vie (1964)
Etiquetas: cinema, música maestro
Publicado por Major Tom - domingo, abril 15, 2007 à(s) 23:21 2 comentáriosLynchiana (ou o sobrolho franzido de Laura Dern)
Já ia de pré-aviso: três horas desta bizzaria era ocasião para os mais sensíveis se prepararem para uma verdadeira trip sem aditivos. E confirma-se: em Inland Empire, Lynch está apostado em fazer-nos desaprender os cânones cinematográficos que interiorizámos, por via de uma verdadeira colonização do olhar imposta pela máquina de Hollywood e que se impôs como dominante no cinema mundial. Deste modo, quem procura a segurança de uma narrativa tradicional, de uma cronologia convencional ou mesmo a definição de espaços e de personagens de forma unidimensional... deve absolutamente ver este filme. Porque é a esses que o filme irá 'bater´de uma forma mais eficaz. Quem, como eu, procurava no filme de David Lynch, aquele outro lado subversivo e surrealista que emergia do interior de uma aparência de paz e tranquilidade (lembram-se das primeiras imagens de Blue Velvet?), e que funcionava como uma tempestade dos sentidos e uma perturbação do intelecto, não deverá encontrar aqui grande sustento. Digamos que Lynch se tornou Lynchiano: estão lá as suas obsessões (as realidades paralelas, as cortinas, as discussões sobre as virtudes do café, ou as personagens bizarras), mas é como se tudo se tornasse um espelho de si mesmo, roçando perigosamente o decorativismo nalgumas situações (um pouco incomodativo até na forma como explora o universo feminino, embora não seja uma visão machista convencional: aqui os homens também são demonizados). Para os estudiosos da semiótica, cada sequência do filme (embora seja difícil falar em sequências estanques ou autónomas) daria para um volume de ensaios: joga-se permanentemente com as ilusões do olhar e com a alteração das perspectivas (o campo nunca corresponde a um contra-campo, mas a uma posição que estava fora de campo até ali), o que é potenciado pela lógica dos filmes dentros dos filmes, num filme ele próprio sobre o cinema e as suas meta-narrativas (há nobres antecedentes, pense-se em Oito e Meio, de Fellini, ou mesmo por cá, alguns momentos da obra de Oliveira - o plano-sequência inicial de Francisca). Contudo, a esquizofrenia do enquadramento não parece corresponder a mais do que uma ideia de um realizador perdido (e deliciado com a perdição) no seu requintado e sofisticado labirinto. E tal como Fellini, o grande, deixou de o ser quando os seus filmes se tornaram fellinianos...
Godard/Anna Karina #1
in Band à part (1962)
Etiquetas: cinema, música maestro
Publicado por Major Tom - quinta-feira, abril 05, 2007 à(s) 14:50 0 comentáriosO mundo do caimão
Um amigo residente há quinze anos em Itália preveniu-me que o mais provável era o novo filme do Nani Moretti não ter grande aceitação no nosso país, em parte por conter uma abordagem política radical mas sobretudo porque lidava com uma realidade e acontecimentos especificamente italianos (o caso Berlusconi). Não poderia estar mais longe da verdade. O 'Caimão' é de uma pertinência universal, e qualquer pessoa deste país poderá estabelecer links de leitura com nosso próprio contexto: a mediatização da realidade, a mercantilização dos serviços públicos, a corrupção, o vedetismo político, e, talvez mais do que tudo, a desagregação do pensamento crítico e a letargia da esquerda, mais empenhada em conservar do que em empenhar-se numa transformação que inclua novas causas (talvez não seja por acaso que o filme inclui um casal de lésbicas). Um mundo novo precisa de um novo olhar, e o cinema de Moretti tacteia por aí, de forma inteligente, num registo muito sui generis - diria cómico-agressivo, mas o registo dramático-pessimista também está lá - que sempre foi o seu. Um arejo cerebral.
Só Moretti me entende
" O dever! O dever de fazer este documentário... não me apetece nada, mas devo fazê-lo... mas não me apetece. Que bom seria se finalmente conseguisse realizar aquele filme musical passado nos anos 50: à esquerda, todos por Estaline, mas... há um pasteleiro, um pasteleiro trotsquista, isolado, difamado, que solitário no seu laboratório, entre as suas massas e os seus pasteis, é feliz... e esquece... e dança.
(...) Hoje vou conseguir boas filmagens, importantes, sim. Apesar de ter um bocado vergonha, se ao menos conseguisse encontrar um modo de filmar sem que ninguém me visse... De qualquer das formas hoje estou em forma, sinto-o. E depois é importante fazer este documentário, e é uma coisa que eu gosto... apesar daquele filme sobre aquele pasteleiro... bem, isso seria outra história!"
Etiquetas: cinema, música maestro, pessoal
Publicado por Major Tom - domingo, março 04, 2007 à(s) 16:34 2 comentáriosLa Mangano
Gloomy sunday. Ressacado de uma noite de Peaches DJ num teatro Sá da Bandeira perfeito para bailes de vampiros. Abandonei o show para onde fui sem companhia (senti-me um etnógrafo nocturno a deambular pelos corredores, tribunas e plateia), depois de alguém me ter queimado o meu casaco preferido (yep, veludo azul assim não se volta a encontrar). Para me animar, recorro à Silvana Mangano.
Cartas de Iwo Jimo
No cinema, cada vez vou mais pelos valores seguros. E também porque algo feito por um homem com tanta história na sua pele como Clint Eastwood, a quem chamam o último dos clássicos (com tudo o de vago e ideológico que isso acarreta; afinal, quem vão ser os clássicos em 2050?). Ou seja, alguém cuja vida na verdade se confunde com a evolução do cinema norte-americano (e não só, foi dirigido por grandes do cinema italiano como Sergio Leone mas também Vittorio De Sica)nos últimos 50 anos, tendo-se tornado um repositório (inclusivamente físico) desse legado. Em "Cartas de Iwo Jimo", vê-se que aprendeu bem a lição e que se tornou ele próprio um mestre (como já em Bird, Caçador Branco, coração preto, Um mundo perfeito , As pontes de Madison County ou mesmo Million Dollar Baby). É um filme negro e violento, como uma ferida exposta cauterizada a fogo. A ferida é a própria herança ideológica da vitória sangrenta dos EUA sobre o Japão no final da II Grande Guerra. O cenário é abstracto como a própria guerra, a loucura pontuada por visões de areias negras e grutas intermináveis onde os japoneses resistiram mais de 40 dias à infinita superioridade bélica do adversário. O paroxismo é acentuado por uma ausência de enquadramento explicativo. As vítimas estão de um lado e do outro das trincheiras, e, como em todas as guerras, o inimigo são as ordens de superiores sempre ausentes, o que faz deste filme uma bela e singular balada pela paz.
Etiquetas: cinema
Publicado por Major Tom - segunda-feira, fevereiro 19, 2007 à(s) 09:23 0 comentários"Ainda há pastores" no Porto
Afinal, este documentário regressa ao Porto, hoje e amanhã pelas 21h30 no Cinema Batalha. Lá estarei!
Etiquetas: cinema
Publicado por Venus as a boy - sexta-feira, fevereiro 16, 2007 à(s) 09:35 0 comentários
O horror! O horror!
São as últimas palavras numa narrativa de viagens, “O Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, que acabei de ler. É um texto do início do século passado, mais tarde reabilitado pela adaptação (bastante livre e re-situada na guerra contra o Vietname) de Francis Ford Coppola no épico “Apocalipse Now”. É impossível, portanto, não imaginar a figura portentosa e decadente de Marlon Brando no seu último papel digno, o sinistro e misterioso coronel Kurtz. Trata-se de uma história sobre as trevas obscuras da perfídia e ambição humana, que conquistaram o seu aspecto mais hediondo no sonho totalitário do colonialismo (em todas as suas formas). O narrador é o homem a quem encomendam o resgate de um posto colonial, e é com ele que iniciamos a primeira das duas viagens: pelo grande rio acima, de um mundo para o outro. A segunda das viagens é interior, e acontece ao mesmo tempo, com a aproximação ao destino. Kurtz está no fim da linha. Vive no coração da selva, longe da civilização que o mandatou. Embriagado pelo poder, enlouquece, acabando por morrer como se um cancro o consumisse, esse mesmo horror com que se confronta antes do último estertor. Ao ler o livro, imaginei estas últimas palavras libertadas num grito lancinante, como um aviso à humanidade. Coppola e Brando optaram por um sussurro. O horror... o horror... Como se vencidos pelo medo que esta revelação abrisse uma nova caixa de Pandora, ou simplesmente porque num mundo ruidoso e bélico, o silêncio se tornou ensurdecedor.
"Dans Paris"
Houve um tempo em que o cinema se fazia e via dentro de uma sala grande, com uma tela e um projeccionista. Os filmes serviam para divertir mas também pensar, e colecionávamos os nomes dos realizadores e actores como quem coleciona cromos. É da memória desse tempo que parece vir "Em Paris", um pequeno filme que passa na simpática sala Estúdio do Teatro do Campo Alegre (já ir ali é como respirar ar puro, comparando com os espaços onde nos obrigam a ver cinema nos últimos anos). O filme tem uma história, com drama, sofrimento, mas também momentos cómicos ou simplesmente lúdicos. Enfim, tem sentido de auto-ironia. E sobretudo tem muito bons actores (aquele Louis Garrel, depois deste e d'"Os amantes regulares" parece mesmo a reincarnação do Jean Pierre Léaud), uma banda sonora feita de jazz e rock, uma montagem pouco linear (cheia de analepses e prolepses), e um narrador com a distinta lata de interromper a acção e falar directamente com o espectador. Já vimos isto nalgum lado? Já (até já vimos esta cena de cama com o mítico par Belmondo-Seberg), mas sabe bem voltar a ver adultos a brincar nas ruas e nos quartos de Paris, e sobretudo ver um cinema que não nos trata como imbecis.
Etiquetas: cinema
Publicado por Major Tom - segunda-feira, novembro 20, 2006 à(s) 13:50 1 comentáriosMarie Antoinette
Uma prisioneira num palácio. Um trabalho notável de reconstituição, de elaboração barroca, com imagens deslumbrantes (algumas mesmo sublimes) e enquadramentos que reconstituem na perfeição o imaginário pictórico da época. Todo o cenário, apesar de real, funciona como uma abstração: mil olhares vigiam os mínimos movimentos da rainha adolescente, joguete maior da encenação decadente do fim da velha ordem. As crianças são pequenos adultos, como muito bem observara Phillipe Ariès. A música, entre as composições de época para orquestras de câmara, e os sons urbano-depressivos dos New Order ou dos The Cure, insere-se no cenário e comenta a narrativa. Um filme arriscado (em todos os sentidos, sendo a ausência de 'comentário político' o mais evidente), mas quanto a mim conseguido, desse valor seguro que começa a ser a assinatura da Sofia Coppola.
Etiquetas: cinema
Publicado por Major Tom - segunda-feira, outubro 23, 2006 à(s) 14:12 3 comentários