Os Olhos da Rosa

Semanalmente, dou formação a um grupo de mulheres adultas. A acção dirige-se, segundo as linhas do programa, para “públicos desfavorecidos”, o que quer dizer, na gíria do serviço social DLD’s (desempregados de longa duração), ex-toxicodependentes (o ‘ex’ é só para dar mais força à coisa, normalmente), minorias étnicas e outros passíveis de ser encaixados no pacote “exclusão social”.
Na última sessão decidi levar um dos livrinhos que o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas publicou e distribuiu um pouco por todo o país no Dia Mundial do Livro. Este tinha-o apanhado no Metro de Lisboa, por ocasião de uma formação que fui lá frequentar. Chamava-se “O Bichinho da Escrita”, e é do Rui Zink. A história fala numa espécie de vírus que assola a cidade onde vive o narrador; o vírus toma conta das pessoas, que logo desatam a escrever sem conseguir parar. Todos ficam viciados na escrita, menos o personagem central, que de repente descobre que só consegue ler. Num mundo onde todos são escritores, um leitor dificilmente conseguia passar despercebido, pelo que ele é obrigado a refugiar-se numa espécie de submundo, onde encontra alguns semelhantes, outros leitores, que formam uma espécie de comunidade clandestina. Achei a ideia engraçada e bem contada. Fez-me lembrar uma outra ficção. O “Fahrenheit 451”, uma assustadora alegoria do fascismo: num futuro não muito distante, um poder invisível mas omnipresente, dita a proibição da leitura. Todos os livros são então queimados pelas novas brigadas de bombeiros, agora com a função de perseguir e queimar a palavra escrita. No final, conhecemos também uma comunidade de resistentes proscritos, os últimos guardiões das histórias encerradas nos livros queimados. Assim, assiste-se a uma espécie de regresso à tradição oral: cada indivíduo da comunidade tem na sua cabeça, memorizado, um determinado livro; este que passa é o “O Jogador”, do Dostoyevski, aquele lá ao fundo é “O Retrato de Dorian Gray”, do Óscar Wilde, and so on, and so on. Para quem não conhecer e estiver curioso, o livro é do Ray Bradbury, um dos mestres do género, e a belíssima adaptação ao cinema esteve a cargo do François Truffaut. Recomendo ambos vivamente.
Adiante. Decidi oferecer o tal livrinho do Rui Zink a uma formanda de olhos muito doces que, para não sair do ramalhete, vive uma vida miserável, divorciada após um matrimónio de que só guarda as mazelas físicas e psicológicas, e com dois filhos numa casa sem wc, como muitas por esta e outras cidades afora.
Hoje, na sessão seguinte, ela pergunta-me candidamente se o livro era para ela. Respondi-lhe que sim, embora a intenção inicial não fosse de facto essa. Os seus olhos brilhantes puseram-me KO, enquanto me confessava que, com livros assim, até tinha descoberto que fazia parte desse mundo, o dos leitores.
Devolveu-me, durante pelo menos mais um ano, a fé no trabalho.

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