O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá
Movido pela curiosidade instalada por uma colega de mestrado (obrigado, Sónia!), espreitei e não larguei enquanto não dei por terminada a leitura deste pequeno livro do Jorge Amado, com o esclarecedor subtítulo - Uma História de Amor. Escrito pelo autor no exílio em Paris, constituiu uma prenda de anos para o seu filho mais velho, João, quando este completava um ano de idade. Trata do amor entre dois seres cujo destino, gravado na lei ancestral da Natureza, ditou que não ficassem juntos. Mas a vontade e o desejo neste pequeno reino animal acabam por dar um ar de sua graça, num melancólico e comovedor final. A ler, para descobrir porque existem estas manhãs com céu azul.
Eu contigo
Há exactamente 27 aninhos nascia a minha musa, que quis o destino que fosse um belo rapaz, o meu Venus as a Boy. Parabéns, belezo!
O eu e tu juntos já o Sérgio Godinho o adivinhara há alguns anos atrás, precisamente nesta letra...
EU CONTIGO
Eu, contigo
eu consigo
fazer o que digo
Eu, contigo
eu não cobro
eu não pago
e eu não devo
Devo dizer-te ao ouvido
eu sem ti
não tem sentido
tem sido
(devo dizer-te ao ouvido)
bem bom
bem bom bem bom
bem mais
do que o que é bom
bem bom bem bom
Rosiska
Intrigado com o seu impressionante currículo, lá me dispus a assistir à conferência de Rosiska Darcy de Oliveira, promovida pelo Instituto Paulo Freire na FPCEUP. Penso que ninguém poderá dizer que foi tempo mal empregue (e esse foi um dos temas mais prementes da comunicação: o uso do tempo nas sociedades contemporâneas). A ilustre e eloquente oradora tentou sensibilizar a plateia para o que considera ser as novas incertezas da educação: o corpo, a família (ou as famílias, com esse 's' que tão radicalmente altera o discurso), o trabalho e o conhecimento.
É necessário instituir uma história do corpo, agora que ele definitavamente saiu da natureza e se instalou na cultura (é mentira senhor Freud: o corpo não é uma fatalidade!): vejam-se as questões da descoincidência sexo/sexualidade; a reivindicação de novas identidades e de 'novos' desejos; a impotência do corpo envelhecido posta em causa; a manipulação genética e a tentação eugénica.
Será que estamos a preparar a juventude para as novas questões? O que estamos a colocar no lugar deixado vazio pelas convicções? A equação produção/consumo=consumo? Essa já provou ser o grande malogro das últimas décadas. Estudos provam que os jovens dão prioridade ao uso do tempo privado em deterimento de um bom salário.
Por outro lado, a tecnologia, esse processo imparável, deveria ser vista como algo de bom, que nos restituísse o tempo para uma vida plena. Se tal não acontece, a culpa estará na tecnologia ou na redistribuição? As enormes desigualdades sociais actuais são corrosivas da cidadania planetária, estão a levar-nos à barbárie. O conhecimento está em combustão permanente, como tal, a escola deve ser o espaço onde se aprende a aprender.
O indivíduo sozinho é um monstro. Na verdade somos todos um feixe de vínculos ("Je est un outre", já o disse Rimabaud). A educação deve ser também a prática da liberdade, através da promoção da responsabilização e do pertencimento. É preciso formar para a convivência com o Outro, lutar pela igualdade reconhecendo a diferença, ou seja, instituir uma relação equivalente. Só assim poderemos responder ao momento que vivemos: a fundação do mundo.
Rosiska nalgumas das suas palavras. Não nega a centralidade do passado e do património cultural. Mas o que a inquieta são estas incertezas, e a certeza única de que a educação tem um papel importante a desempenhar.
Falkenau, o impossível
Não viram nada, não ouviram nada, não sentiram nenhum cheiro. Eras estas as palavras dos habitantes de Falkenau, uma pequena aldeia checoslovaca, que viveram durante anos a escassos 15 metros de um dos inúmeros campos de concentração ('campos de trabalho' era a verdadeira designação) onde centenas de pessoas eram torturadas e entregues à fome até à morte. Samuel Fuller, então militar num dos poletões americanos nesse tão próximo Maio de 1965, tinha acabado de receber por correio a encomenda tanto tempo aguardada e enviada pela mãe: uma câmara de filmar de 6mm. O capitão pediu-lhe que registasse a lição que planeara para os aldeões. Sob um clima de 'tensão insuportável', obrigou-os a assistir ao ritual de exposição dos cadáveres definhados, que foram então vestidos, de forma a poderem reaver um pouco da dignidade perdida. Lentamente, a caravana fúnebre pô-se em marcha e atravessou toda a aldeia em direcção ao cemitério, onde os corpos foram enterrados pelos próprios homens que nada sabiam, que nada haviam visto.
A preservação da memória abriga estes momentos, e nada poderá justificar a mentira que é afirmar que nada disto existiu.
White folia!
Absolutamente animal a energia deste duo imparável. Ontem lá se foram os planos de estudo, vidrado que fiquei no concerto que apanhei em pleno zapping. Não matava, mas faria quase tudo o resto por estar assim tão perto do meu guitar hero para o novo século. Dum dum dum dum dum...
Um tubarão morto
Um pequeno post apenas por respeito às pessoas que intencional ou acidentalmente têm vindo parar à Orquídea e vêm isto assim tão quedo: não, não fomos passar férias à Austrália nem partimos para fazer voluntariado na Tailândia. Simplesmente, a vida é feita de prioridades flutuantes (uma espécie de casamento, como falavam ontem dois personagens do Six Feet Under, entre uma série de acasos que têm que acontecer e a nossa própria capacidade de fazer opções, visão que não deixa de estar estranhamente perto daquilo que o teórico da Terceira Via, Anthony Giddens, chama de Estruturação, ou seja: agimos dentro de estruturas que nos pré-existem, mas agimos, e como tal também somos estruturantes, contribuímos para a mudança, mesmo que aparentemente a entendamos apenas como uma mudança pessoal). As prioridades neste cruzamento espacio-temporal são: o mestrado, o trabalho e tentar ter uma vida mentalmente equilibrada no meio disto e do resto.
Dito isto, tenho que admitir que é uma dor de alma ver isto assim parado, e um blogue (roubando a metáfora ao Woody Allen) é como um tubarão, tem que avançar sempre, caso contrário, o que temos entre mãos é... um tubarão morto. Oh well, that's life...
Major Tom nas cidades
Se é verdade que a impressão que temos dos lugares depende em grande medida do estado de espírito com que mergulhamos neles, assim como da qualidade da companhia ou da falta dela, também não deixa de ser interessante perceber o quanto dos lugares existe quanto não estamos neles, quer seja pela expectativa e antecipação (quem gosta de comprar mapas e guias ou de pesquisar viagens em revistas ou sites sabe o que isso é), quer seja pela memória que permanece um dia, um mês ou anos depois da partida. Vem isto a propósito de um pequeno livro do David Leavitt sobre Florença, cidade onde habitou alguns anos e que nos descreve de forma apaixonada através do eco das suas personagens ao longo da história, com uma insistência particular nos imigrantes anglófonos. Um pequeno tesouro para abrir o apetite de um Verão toscano...
5x2
É o título do último filme do François Ozon. Contra as indicações de um casal amigo (que o viu na versão dobrada italiana, registe-se) lá fomos ver o dito cujo, e confesso que fiquei muito agradavelmente supreendido. Não se trata de louvar um dispositivo narrativo (o filme começa com a última cena da história, em termos cronológicos, seguindo-se outras quatro cenas que vão recuando progressivamente no tempo, até ao momento do encontro e enamoramento) mas sim do aproveitamento sábio que dele é feito. Nalgumas questões acerta na mouche: o problema do compromisso dos casais, a fidelidade ou o modelo imposto de felicidade conjugal. As cenas são intercaladas com músicas do cancioneiro romântico italiano de fim de século (XX), e é impossível não sair da sala a traulitar o Sparring Partners na voz rouca e no piano martelado do Paolo Comte. Premonitória e reveladora é a última imagem, com o ainda casal em fase de flirt a mergulhar no mar onde corriam o risco, conforme foram avisados, de ser levados por correntes perigosas. Para mim, o melhor do moço até à data. Ah, e os actores são fabulosos, com um destaque pessoal para a sempre surpreendente Valeria Bruni-Tedeschi.
Dentro de momentos a vida continua.
De volta às rotinas diárias, depois de uma semana de descanso, longe do Porto, da quadra natalícia, do trânsito, do ruído e dos lugares por onde passamos todos os dias. Cenário: o rio Douro (sempre presente!), a linha de comboio, a casa. Uma semana de leituras, de sorrisos, de danças, de cantigas, de passeios, de descobertas, de abraços, de brincadeiras, de ternuras, de cumplicidades e de regresso à infância. Que melhor maneira para se entrar no novo ano? ;)
Estação: Caldas de Aregos
Numa marcha lenta mas imparável, Aregos vai entrando em cada um de nós. Cruzamos memórias, preocupações e sonhos em brincadeiras junto à lareira ou em cima da linha de comboio. Fomos chegando e de repente não se percebe como seremos capazes de partir e regressar a outra vida, aquela a que chamamos realidade e onde não se ouve o barulho dos passos no cascalho ou a água da mina a gotejar no tanque.
Agora já só conseguimos olhar para onde existirem cores terra: no mínimo uma laranjeira ou uma parede de lousa a pontuar a paisagem. As conversas fluem e jogamos aos analistas, também sintonizados nos silêncios, como se dirigidos por uma batuta escondida. Estamos sempre com fome. O corpo relaxa todos os seus músculos, estende-se ao Sol e até se deleita com o frio. Apetece não acordar, continuar a dançar e acreditar em fantasmas.