Lynchiana (ou o sobrolho franzido de Laura Dern)



Já ia de pré-aviso: três horas desta bizzaria era ocasião para os mais sensíveis se prepararem para uma verdadeira trip sem aditivos. E confirma-se: em Inland Empire, Lynch está apostado em fazer-nos desaprender os cânones cinematográficos que interiorizámos, por via de uma verdadeira colonização do olhar imposta pela máquina de Hollywood e que se impôs como dominante no cinema mundial. Deste modo, quem procura a segurança de uma narrativa tradicional, de uma cronologia convencional ou mesmo a definição de espaços e de personagens de forma unidimensional... deve absolutamente ver este filme. Porque é a esses que o filme irá 'bater´de uma forma mais eficaz. Quem, como eu, procurava no filme de David Lynch, aquele outro lado subversivo e surrealista que emergia do interior de uma aparência de paz e tranquilidade (lembram-se das primeiras imagens de Blue Velvet?), e que funcionava como uma tempestade dos sentidos e uma perturbação do intelecto, não deverá encontrar aqui grande sustento. Digamos que Lynch se tornou Lynchiano: estão lá as suas obsessões (as realidades paralelas, as cortinas, as discussões sobre as virtudes do café, ou as personagens bizarras), mas é como se tudo se tornasse um espelho de si mesmo, roçando perigosamente o decorativismo nalgumas situações (um pouco incomodativo até na forma como explora o universo feminino, embora não seja uma visão machista convencional: aqui os homens também são demonizados). Para os estudiosos da semiótica, cada sequência do filme (embora seja difícil falar em sequências estanques ou autónomas) daria para um volume de ensaios: joga-se permanentemente com as ilusões do olhar e com a alteração das perspectivas (o campo nunca corresponde a um contra-campo, mas a uma posição que estava fora de campo até ali), o que é potenciado pela lógica dos filmes dentros dos filmes, num filme ele próprio sobre o cinema e as suas meta-narrativas (há nobres antecedentes, pense-se em Oito e Meio, de Fellini, ou mesmo por cá, alguns momentos da obra de Oliveira - o plano-sequência inicial de Francisca). Contudo, a esquizofrenia do enquadramento não parece corresponder a mais do que uma ideia de um realizador perdido (e deliciado com a perdição) no seu requintado e sofisticado labirinto. E tal como Fellini, o grande, deixou de o ser quando os seus filmes se tornaram fellinianos...

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