Godard / Anna Karina #3


in Pierrot, le fou (1965)

Na casa dos sorrisos

"- Já agora, queres ver o resto do sítio?"
O sítio era uma casa de acolhimento para vítimas de violência doméstica. No final de uma rua sem saída, batido pelo primeiro Sol de Verão, fica este casarão recuperado e ampliado com um átrio de onde se ouve a petizada numa pequena arena com saibro e os vestígios de uma relva que alguém começou. Conheci a lavandaria comum, salas de estar e corredores com uma luz arquitectónica, e depois a pequena cantina, onde ainda almoçavam algumas retardatárias com sorriso generoso. Uma delas agarra-se à minha cicerone com um abraço demorado e infantil e oferece-lhe uma maçã. Conheci também a cozinheira e o periquito (outro náufrago, entrou por uma janela e por ali ficou). Há uma pequena sala com cadeiras e um quadro, para reuniões ou sessões variadas. Contra a minha relutância, fui encaminhado para os quartos. Vivem ali 12 mulheres e 13 crianças, cuja presença justifica um pequeno exército de assistentes sociais, psicólogos e auxiliares, que amparam, encaminham e monitorizam. A reduzida lotação está preenchida. As outras, que conseguiram reunir força para chegar ali, terão que esperar que a vida lhes arranje outra forma de tomar rédea ao destino. São as refugiadas da macho-latinidade, e nos olhos sinto que estudam a minha presença. Ali já se forjaram amizades e as crianças percorrem os colos disponíveis. Prometo a uma delas, de caracóis ensarilhados, um postal que substitua a curiosidade devotada aos meus papeis. Mas já é o mundo lá fora, aquele que um dia ela vai ter que enfrentar, que me chama para outros afazeres.

Por terras de Montemor-o-Velho


Abril 2007

Olhares de Lisboa #2

Olhares de Lisboa # 1


(vista do "Adamastor")

O Reino Interdito



Lido muuuito lentamente (ao ritmo de quem tem como prioridades actuais ensaios, estudos e artigos científicos), lá conseguir terminar por fim "O Reino Interdito", um interessante romance de Rose Tremain. O reino interdito do título (na sua versão traduzida), a avaliar pela melancolia geral das histórias que se entrelaçam, é o da felicidade dos personagens. Mas há uma beleza nobre na forma como cada uma persegue o seu sonho, e não conseguimos deixar de nos enternecer pela sua luta, com um destaque especial para a história de Martin, que nasceu Mary. Fica um excerto de uma das conversas entre ele e o terapeuta a quem recorre para iniciar a transição.
"-É uma coisa que já observei na maior parte das pessoas que ajudei. Quase sempre em homens que querem tornar-se mulheres, mas também num caso como o seu. Tem a ver com o facto de permanecer sempre um pouco exterior ao mundo. Quando se vive fora de qualquer coisa, é mais fácil julgá-la com sabedoria.
- Mas eu não quero viver «fora do mundo». Foi isso o que senti toda a minha vida.
- Só por sentir-se dividida, separada de si própria, se quisermos pôr a questão nesses termos. Em breve os seus dois «eus» irão integrar-se melhor, mas o seu estatuto no mundo continuará a ser especial porque já viu o mundo sob duas perspectivas diferentes. Não preciso de lhe lembrar que isso não é possível para a maioria das pessoas."

Godard/Anna Karina #2


in Vivre sa vie (1964)

Rancière e o contemporâneo



"As desventuras contemporâneas do pensamento crítico", segunda parte do ciclo de conferências de Serralves, começou com um atraso que evocava já algumas desventuras da contemporaneidade (a greve nos aeroportos franceses impediu o ilustre orador de chegar atempadamente). Refiro-me à nossa dependência do que Giddens bem designou de sistemas periciais (essas estruturas que nos permitem voar a sete mil pés de altitude ou falar com um desconhecido em Tóquio com uma webcam, mesmo sem fazer a mínima ideia de como tal é possível).
Com Jacques Rancière, fomos introduzidos na tentativa de demonstração da possibilidade de um pensamento crítico nos dias que correm, ainda que contra os vaticínios trágicos e contra-producentes de uma esquerda melancólica, nostálgica das suas conquistas. Se os eventos que se sucederam a 1989, com o colapso da União Soviética, se traduziram no final de uma oposição entre democracia e totalitarismo, podemos agora sustentar que o ‘inimigo’ (se o entendermos como o alvo do pensamento crítico) reside no âmago das democracias liberais, que parecem querer confirmar o triunfo do capitalismo. O entendimento do que é igualdade deve lido a esta luz: trata-se aqui de uma igualdade de acesso ao consumo, e não já como a atribuição de direitos de cidadania.
O pensamento crítico pode regressar assim às suas interpretações iniciais, que lidavam com a tensão entre ideias de emancipação, tal como evocadas nas clássicas tertúlias platónicas.
Para Rancière, a democracia deve ser o exercício político dos que não tem lugar (os n’importe qui), ou seja, os que ficaram sempre de fora de uma estratificação criada pela detenção de conhecimentos, títulos ou capital no acesso à pollis.
A visão de uma contemporaneidade em que todos os conceitos duros ou ideologias se dissolveram, correspondendo a uma imagem de modernidade líquida (impermanente), retoma de certa forma o pensamento marxiano (“tudo o que é sólido se desfaz no ar”). Neste cenário, o pensamento crítico, que outrora estava ao serviço da emancipação e capacitação dos desapossados, parece agora servir apenas o empowerment de uma elite intelectual (Rancière numa tirada repleta de sentido de auto-irrisão).
Contudo, o "ódio à democracia", ou seja, o cerco montado de ataques ao conceito de democracia que questiona permanentemente a sua validade no quadro de pensamento contemporâneo, pode ser firmemente contradito por uma pressuposição básica: a da igualdade intelectual potencial das pessoas, essa capacidade de pensamento que se tem traduzido em manifestações de combate crítico (manifestações, movimentos de mobilização, etc), que são respostas cabazes aos que percepcionam o indivíduo como um receptor passivo e estupidificado pela avalanche de mensagens e estímulos visuais do mundo contemporâneo.

Postal free


Lynchiana (ou o sobrolho franzido de Laura Dern)



Já ia de pré-aviso: três horas desta bizzaria era ocasião para os mais sensíveis se prepararem para uma verdadeira trip sem aditivos. E confirma-se: em Inland Empire, Lynch está apostado em fazer-nos desaprender os cânones cinematográficos que interiorizámos, por via de uma verdadeira colonização do olhar imposta pela máquina de Hollywood e que se impôs como dominante no cinema mundial. Deste modo, quem procura a segurança de uma narrativa tradicional, de uma cronologia convencional ou mesmo a definição de espaços e de personagens de forma unidimensional... deve absolutamente ver este filme. Porque é a esses que o filme irá 'bater´de uma forma mais eficaz. Quem, como eu, procurava no filme de David Lynch, aquele outro lado subversivo e surrealista que emergia do interior de uma aparência de paz e tranquilidade (lembram-se das primeiras imagens de Blue Velvet?), e que funcionava como uma tempestade dos sentidos e uma perturbação do intelecto, não deverá encontrar aqui grande sustento. Digamos que Lynch se tornou Lynchiano: estão lá as suas obsessões (as realidades paralelas, as cortinas, as discussões sobre as virtudes do café, ou as personagens bizarras), mas é como se tudo se tornasse um espelho de si mesmo, roçando perigosamente o decorativismo nalgumas situações (um pouco incomodativo até na forma como explora o universo feminino, embora não seja uma visão machista convencional: aqui os homens também são demonizados). Para os estudiosos da semiótica, cada sequência do filme (embora seja difícil falar em sequências estanques ou autónomas) daria para um volume de ensaios: joga-se permanentemente com as ilusões do olhar e com a alteração das perspectivas (o campo nunca corresponde a um contra-campo, mas a uma posição que estava fora de campo até ali), o que é potenciado pela lógica dos filmes dentros dos filmes, num filme ele próprio sobre o cinema e as suas meta-narrativas (há nobres antecedentes, pense-se em Oito e Meio, de Fellini, ou mesmo por cá, alguns momentos da obra de Oliveira - o plano-sequência inicial de Francisca). Contudo, a esquizofrenia do enquadramento não parece corresponder a mais do que uma ideia de um realizador perdido (e deliciado com a perdição) no seu requintado e sofisticado labirinto. E tal como Fellini, o grande, deixou de o ser quando os seus filmes se tornaram fellinianos...

Fait divers pascoais

No fim-de-semana pascal, duas estreias para as orquídeas: o primeiro dia de praia (praia, mesmo, com as peles ao léu), num rápido mas regenerador périplo pela costa galega e, no regresso, a primeira vez que mudámos um pneu após um furo em plena auto-estrada (não consigo esconder algum orgulho por poder desmistificar assim um dos estereótipos 'maricas' com os quais eu me julgava mais identificado: a inaptidão para o trabalho manual).
A propósito de estereótipos, parece que as forças de (in)segurança pública da invicta andaram para aí a tentar espalhar a ideia de que a hospitalidade tripeira é só para alguns, de preferência muito machos e adeptos de futebol.
Posto isto, acho que vou fazer como as mulheres no último mês de gravidez: ter preparada uma malita com os recursos necessários para poder abalar a qualquer momento para o país de nuestros hermanos.

Godard/Anna Karina #1


in Band à part (1962)

As minhas cidades - Bologna

Em Bolonha havia uma janela da cantina universitária de onde se podia observar uma praça forrada a grafitis e palimpsestos de posters, na qual se mobilizava pelo menos uma concentração diária contra ou a favor de qualquer coisa (geralmente contra). A cidade era um concentrado de arcadas que se percorriam facilmente de lés-a-lés numa bicicleta emprestada. Dois outros sítios funcionavam contudo como pólos de atracção das minhas deambulações: o jardim Margherita, com os seus relvados que convidavam à leitura e à divagação filosófica (tinha 22 anos, apesar de tudo) e a inevitável Piazza Maggiore com o também inevitável e peculiar Duomo (o revestimento superior da catedral nunca chegou a ser concluído, dando-lhe assim um aspecto imponente mas frágil). Ao fundo, a pequena Piazza Neptuno, com a sua famosa representação da divindade marítima, lutando contra serpentes gigantes. Se as cidades têm uma cor, a de Bolonha é decididamente o vermelho das cortinas, do tijolo burro, das bandeiras e do entardecer toscano das colinas ali ao lado. Algumas torres decepadas lembravam às novas gerações o preço da ambição (no tempo dos doges, as torres simbolizavam o estatuto das famílias rivais).



Hoje, a cidade é mais um exemplo da vaidade num país que não existe, com a sua vida fora de portas nas praças, nos mercados de rua e nas cooperativas, com os seus habitantes de porte altivo e vestes impecáveis e as suas várias tradições históricas (a mais recente talvez a da esquerda racical, após os ataques das brigate rosse). Como estrangeiro, Bolonha foi também a minha primeira cidade interior, e tenho regressado com frequência aos seus cenários.

Trans-power!



Uma bela foto de Carla Antonelli, transexual activista que há 30 anos tem batalhado aqui no país vizinho pelos direitos da população 't', aqui retratada como leoa das Cortes para a capa da edição de Março da revista Zero. Este ano bem pode ter razões para estar contente, com a aprovação em Espanha da lei de identidade de género, documento que possibilita doravante que qualquer cidadão possa aceder sem obstáculos à alteração da sua identidade de género em termos formais. No nosso país, a realidade da população transexual é ainda bastante desconhecida e alvo de múltiplas descriminações e incompreensões (incluindo da parte do próprio movimento LGBT). Não existe um enquadramento legal do processo de transição identitária, pelo que o indivíduo que pretenda fazê-lo se depara com um conjunto de obrigações de procedimentos que fariam as tarefas de Hércules parecerem um simples campeonato de caricas. A ILGA publicou no início deste ano um documento que sintetiza de forma bastante clara o diagnóstico e reivindicações fundamentais para que também estes cidadãos possam ver reconhecidos os seus direitos como pessoas plenas, e desta forma combater na realidade a profunda e inadmissível discriminação de que são alvo, a prova mais irrefutável de que o regime de género (e sexualidade) dominante é uma das formas mais brutais de dominação. A hora 'h' já começou. Agora está na hora 't'!





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