O horror! O horror!
São as últimas palavras numa narrativa de viagens, “O Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, que acabei de ler. É um texto do início do século passado, mais tarde reabilitado pela adaptação (bastante livre e re-situada na guerra contra o Vietname) de Francis Ford Coppola no épico “Apocalipse Now”. É impossível, portanto, não imaginar a figura portentosa e decadente de Marlon Brando no seu último papel digno, o sinistro e misterioso coronel Kurtz. Trata-se de uma história sobre as trevas obscuras da perfídia e ambição humana, que conquistaram o seu aspecto mais hediondo no sonho totalitário do colonialismo (em todas as suas formas). O narrador é o homem a quem encomendam o resgate de um posto colonial, e é com ele que iniciamos a primeira das duas viagens: pelo grande rio acima, de um mundo para o outro. A segunda das viagens é interior, e acontece ao mesmo tempo, com a aproximação ao destino. Kurtz está no fim da linha. Vive no coração da selva, longe da civilização que o mandatou. Embriagado pelo poder, enlouquece, acabando por morrer como se um cancro o consumisse, esse mesmo horror com que se confronta antes do último estertor. Ao ler o livro, imaginei estas últimas palavras libertadas num grito lancinante, como um aviso à humanidade. Coppola e Brando optaram por um sussurro. O horror... o horror... Como se vencidos pelo medo que esta revelação abrisse uma nova caixa de Pandora, ou simplesmente porque num mundo ruidoso e bélico, o silêncio se tornou ensurdecedor.
Fez-se silêncio
de profundis amamus
Ontem às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria
Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros
Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
é há quatro mil pessoas interessadas
nisso
Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso
Mário Cesariny - Pena Capital, 1957
Kate Bush: Army Dreamers
Etiquetas: música maestro
Publicado por Major Tom - domingo, novembro 26, 2006 à(s) 22:42 0 comentáriosDo bloco
Por muito que batalhe com as cores e com as formas, regresso sempre à linha preta e às caras que dizem ser auto-retratos. O último traço foi nas férias de Verão e o bloco já reclama.
Etiquetas: desenhos
Publicado por Major Tom - terça-feira, novembro 21, 2006 à(s) 09:39 0 comentários"Dans Paris"
Houve um tempo em que o cinema se fazia e via dentro de uma sala grande, com uma tela e um projeccionista. Os filmes serviam para divertir mas também pensar, e colecionávamos os nomes dos realizadores e actores como quem coleciona cromos. É da memória desse tempo que parece vir "Em Paris", um pequeno filme que passa na simpática sala Estúdio do Teatro do Campo Alegre (já ir ali é como respirar ar puro, comparando com os espaços onde nos obrigam a ver cinema nos últimos anos). O filme tem uma história, com drama, sofrimento, mas também momentos cómicos ou simplesmente lúdicos. Enfim, tem sentido de auto-ironia. E sobretudo tem muito bons actores (aquele Louis Garrel, depois deste e d'"Os amantes regulares" parece mesmo a reincarnação do Jean Pierre Léaud), uma banda sonora feita de jazz e rock, uma montagem pouco linear (cheia de analepses e prolepses), e um narrador com a distinta lata de interromper a acção e falar directamente com o espectador. Já vimos isto nalgum lado? Já (até já vimos esta cena de cama com o mítico par Belmondo-Seberg), mas sabe bem voltar a ver adultos a brincar nas ruas e nos quartos de Paris, e sobretudo ver um cinema que não nos trata como imbecis.
Etiquetas: cinema
Publicado por Major Tom - segunda-feira, novembro 20, 2006 à(s) 13:50 1 comentáriosIr dizendo
Da indizibilidade do ser até à vontade de dizer algo vai às vezes uma pequena mas eloquente distância. Nestes dias de interregno, aconteceu-me a fase final da malfadada formação para renovação do CAP (essas extraordinárias inutilidades burocráticas que obrigam meia dúzia de tipos a aturarem-se uns aos outros durante 60 horas e no final irem jantar juntos para simular uma cumplicidade inexistente).
Também aconteceram duas belíssimas sessões do Cinanima, esse injustamente olvidado festival de cinema de animação que acontece anualmente na cidade de Espinho, onde se percebe que o cinema precisa urgentemente de novas linguagens, com a furiosa inteligência criativa destas pequenas obras-primas.
Começou a circular um abaixo-assinado para a criação de um movimento pelo sim no referendo sobre o aborto, onde surpreendido encontrei o nome da Agustina Bessa Luís como signatária. Faço correr o dito e abro discussões onde pousa a folha.
O Ministério da Educação decide tornar público e oficial o alargamento do processo de reconhecimento e validação de competências ao secundário. Apreensivo, estudo os documentos e interrogo-me sobre a capacidade dos próprios certificadores mediante os critérios apresentados.
A terminar a semana, uma visita por convite a um dos novos espaços de 'realidade paralela' urbana do século XXI: os grandes ginásios urbanos. Entrei, experimentei uma ou duas dessas modalidades com nomes ingleses, pacotes de exercícios repetidos resultantes do mix de várias modalidades já existentes, patenteados e franchisados às novas catedrais onde se presta culto a corpos já suficientemente tonificados. O espaço é agressivamente concentracionário; todos os movimentos são controlados por cartões, fechaduras, códigos, inscrições em modalidades; somos conduzidos por setas, instruções, circuitos e uma música enjoativa e omnipresente. Nas sessões grupais, um tom de uníssino que me põe desconfortável.
Respiro fundo. Porque hoje é sábado.
A Micas flash!
Como podiamos ter resistido a este anúncio?! Três meses depois de ter vindo cá para casa estamos completamente rendidos aos seus encantos! E penso que ela não estará menos rendida, a contar pelo volume sonoro do seu ronronar quando vem para o nosso colo a pedir mimos. :)
Encontrei um site...
Serra da Freita: caminho para Drave
Naturalmente perverso
Olhar a realidade humana com o mesmo olhar com que se analisa a realidade animal ou biológica é um caminho tentador, mas sempre perigoso. Num dos meus filmes preferidos - "O meu tio da América", Alain Resnais ilustrava de forma eloquente as possibilidades dessa ponte, no melhor de todos os tratados sobre a etologia social. Edward T.Hall, num ensaio famoso - "A Dimensão Oculta", também propunha uma grelha de leitura das relações sociais de acordo com as implicações do relacionamento entre indivíduos num determinado espaço, utilizando conceitos como a distância de fuga, herdeiros da concepção territorial no estudo dos predadores e das espécies em geral no reino animal. De acordo com esta leitura, as 'anomias' vividas nas grandes cidades poderiam ser explicadas pela transgressão das distâncias necessárias entre indivíduos, constrangidos a habitar no mesmo espaço limitado. Os perigos de uma observação que parta deste pressuposto são muitos (na obra referida, e bem ao estilo desta corrente, Hall faz interpretações rebuscadas e abusivas de factos sociais avulsos de forma a corroborar a sua teoria), sobretudo porque esta analogia faz parte de um discurso de senso comum que frequentemente procura legitimar hierarquias e estabelecer estados 'normais' e 'naturais', contra formas 'patológicas' ou 'desvios' (hetero versus homo é sempre um bom exemplo). A proxémia, contudo, pode ser uma interessante alavanca de reflexão, porque alerta para o facto de que espaço, tal como a linguagem ou o poder, deve fazer parte da equação (no Ártico existem dinâmicas que necessariamente não acontecem em Marrocos). Importa é que não fiquemos indiferentes à complexidade das interacções que compõem mesmo os mais 'pequenos' fenómenos do quotidiano, como uma conversa com um desconhecido ou a forma como nos dispomos em torno da mesa para jantar.
Imagem: 'Chris'(1979), de David Armstrong
Pequenos grandes momentos de BD
in "Super Paradise", de Ralf König (2005: Barcelona. Ediciones La Cúpula)
Brave new world
"Os deuses são justos. Sem dúvida. Mas o seu código de leis é ditado, em última instância, pelas pessoas que organizam a sociedade. A providência recebe a palavra de ordem dos homens". Rezava assim um dos últimos diálogos no "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley. Num futuro dominado pela tecnologia e pela racionalização de toda a vida social, económica, cultural e sexual, fazia sentido que Jesus Cristo fosse substituído por Henry Ford, como referência transcendental e fundadora (no livro, o ano zero passou a ser considerado o ano em que foi criado o famoso modelo T da fábrica de automóveis Ford, o tal que inaugurou a primeira linha de montagem da história da indústria). Tendo sido escrito nos anos 30 como um vigoroso alerta contra os perigos dos totalitarismos que viriam a mudar a face do planeta pouco tempo depois, a obra não perdeu qualquer pertinência neste ano de 2006 D.C., incluindo nessa mesma reflexão sobre o divino como manifestação do pensamento humano e da sua contemporaneidade. O divino somos nós, na nossa sordidez, mas também na nossa magnificência (que melhor exemplo do que o concerto que Jordi Savall e os seus Hespèrion XXI ofereceram na Casa da Música no passado Sábado?).
Etiquetas: música maestro
Publicado por Major Tom - quinta-feira, novembro 02, 2006 à(s) 00:21 0 comentários