Naturalmente perverso


Olhar a realidade humana com o mesmo olhar com que se analisa a realidade animal ou biológica é um caminho tentador, mas sempre perigoso. Num dos meus filmes preferidos - "O meu tio da América", Alain Resnais ilustrava de forma eloquente as possibilidades dessa ponte, no melhor de todos os tratados sobre a etologia social. Edward T.Hall, num ensaio famoso - "A Dimensão Oculta", também propunha uma grelha de leitura das relações sociais de acordo com as implicações do relacionamento entre indivíduos num determinado espaço, utilizando conceitos como a distância de fuga, herdeiros da concepção territorial no estudo dos predadores e das espécies em geral no reino animal. De acordo com esta leitura, as 'anomias' vividas nas grandes cidades poderiam ser explicadas pela transgressão das distâncias necessárias entre indivíduos, constrangidos a habitar no mesmo espaço limitado. Os perigos de uma observação que parta deste pressuposto são muitos (na obra referida, e bem ao estilo desta corrente, Hall faz interpretações rebuscadas e abusivas de factos sociais avulsos de forma a corroborar a sua teoria), sobretudo porque esta analogia faz parte de um discurso de senso comum que frequentemente procura legitimar hierarquias e estabelecer estados 'normais' e 'naturais', contra formas 'patológicas' ou 'desvios' (hetero versus homo é sempre um bom exemplo). A proxémia, contudo, pode ser uma interessante alavanca de reflexão, porque alerta para o facto de que espaço, tal como a linguagem ou o poder, deve fazer parte da equação (no Ártico existem dinâmicas que necessariamente não acontecem em Marrocos). Importa é que não fiquemos indiferentes à complexidade das interacções que compõem mesmo os mais 'pequenos' fenómenos do quotidiano, como uma conversa com um desconhecido ou a forma como nos dispomos em torno da mesa para jantar.
Imagem: 'Chris'(1979), de David Armstrong

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