As orquídeas partem de novo...

... para recolher novas histórias para contar. Portem-se bem e exercitem a cidadania. Até dia um.

Wonder team


Obrigado por me desinquietarem. Tréguas por uma quinzena. Até já.

O olhar de Guacira - II


Achei interessante também a forma como Guacira sublinhou a importância da sexualidade na definição da masculinidade (repare-se nas representações sobre a impotência: "eu já não sou homem!"), agregada à homofobia e à misogenia. No caso das mulheres a centralidade na definição do ser feminino parece passar mais pela maternidade. Ocorreu-me que tal parecia ser confirmado pelas reacções sociais diferenciadas à 'saída do armário': enquanto que os homens se interrogam sobre o tipo de possibilidades no acto sexual ("mas como é que funciona na cama?"), as mulheres tendem a lamentar as presumidas implicações na fertilidade ("e eu que pensava que ia ter netos...").
Interessante também a reflexão sobre a apresentação dos argumentos essencialistas e construtivistas em relação ao género e à sexualidade. É verdade que os primeiros são normalmente associados a correntes mais conservadoras, mas eles têm sido 'repescados' para as políticas de identidade, tornando-se desta forma progressistas. Por outro lado, dizer que determinado conceito (por exemplo, a homossexualidade) é uma construção pode conduzir a um discurso do tipo corrector e 'retrógada'("se conheço a causa, posso tentar eliminá-la").
Enquanto divagava sobre o carácter compulsório da heterossexualidade e as suas implicações, fui registando as reacções da pequena plateia, um grupo de mulheres aparentemente pouco habituadas a estas 'sacudidelas' do espírito, mas que se entregaram não sem alguma perplexidade ao jogo da desconstrução que terminou numa breve apreciação sobre a teoria queer. Parece ser este um bom exemplo do olhar pós-estruturalista: não importa saber qual é a verdade, antes apurar as causas que permitiram que esta seja lida como tal.
Foucault passou por ali.
Imagem: Pierre et Gilles

O olhar de Guacira


Penetrei silenciosamente numa palestra de outro mestrado. A oradora convidada, Guacira Lopes Louro, brasileira, era autora de um pequeno livro que eu lera com atenção: "Currículo, Género e Sexualidade" (Porto Editora),ensaio sobre as imbricações entre estas dimensões no campo educativo. Tacteando caminho, começou por apresentar alguns retratos de feminilidades, para ajudar a desmontar o seu carácter de construção social. Os exemplos escolhidos eram propositadamente transgressores, tais como o caso da mulher que vivia no sertão brasileiro uma relação amorosa com três homens (caso adaptado ao cinema no filme de grande sucesso comercial "Eu, tu, eles") ou o relato de um homem que explicava como trazia na carteira 'a sua mulher', isto é, os apetrechos necessários para se transformar como tal (as metáforas utilizadas são óptimas para acentuar o carácter construído do género: "eu me monto e a drag baixa"). Referiu ainda um estudo sobre sociabilidades lésbicas, em que se expressa uma dualidade de representações sobre si próprias: por um lado, as 'piruas' (espécie de barbie elaborada) e por outro as 'camionistas'. O que parece curioso segundo a palestrante é como estas representações se apresentam sem contudo transgredirem totalmente as fronteiras de género, com a excepção talvez da figura da drag, que se apropria e subverte, parodiando-a, a ideia de essência feminina.
Imagem: Pierre et Gilles

Viagem por Goethe


De acordo com o clássico (em circuitos académicos de Belas Artes, pelo menos) roteiro "Viagem a Itália", escrito no final do século XVIII por um então jovem Goethe, conhecer Nápoles, com toda a sua pujança histórica e natural (a sua famosa baía e a omnipresença minaciosa do Vesúvio) faz a antiga capital do mundo - Roma - parecer uma pequena capela mal localizada. O mais interessante, contudo, não são as inúmeras referências artísticas e paisagísticas (algumas não consegui mesmo encontrar em guias actuais), a constatação de que "aqueles homens trabalhavam para eternidade" e que "por este lugar passa a história do mundo". É o périplo interior que ganha, as divagações do espírito que o autor descreve como um processo que em Itália acontece de modo único: "É bem verdade que nada se compara à nova vida que a observação de uma terra estranha proporciona a um homem pensante". É um "renascimento que nos transforma a partir de dentro (...) tudo se acumula à nossa volta e irradia de novo a partir de nós."
Faltam 4 dias para descobrir, com um bloco de desenho na mão, para registar os sítios como se fazia antes da invenção da fotografia: com a alma.


"Um documentário – "Gisberta | Liberdade" – foi realizado pela TGEUnet e
activistas portugueses. Este filme em DVD será projectado no Porto,
seguido de um debate, dia 8 de Junho, às 21h30 na Auditoria da Academia
Contemporânea do Espectáculo, Praceta Coronel Pacheco."

Italian Instabile Orchestra


Em plena rotação mental rumo à península itálica.
Sábado à tarde, no cenário convidativo dos jardins de Serralves, uma estonteante performance da Italian Instabile Orchestra conseguiu agarrar de forma enérgica uma imensa multidão debaixo de uma tenda de circo para ouvir um jazz sui generis, cujas raízes bebem directamente das canções populares e se extendem à vanguarda musical da experimentação, de forma bem humorada e dessacralizada. Momentos assim (o acesso às festividades desse fim de semana era gratuito) e ainda que não se perceba perfeitamente o alcance dessa dinâmica, conseguem pelo menos relembrar a importância política de uma dinâmica cultural na cidade que transborde das suas tão controladas fronteiras. É estranho pensar que o jazz nasceu ele próprio da pobreza e que foi nessa génese a voz dos excluídos.

Janela indiscreta


James Stewart imortalizou o voyeurismo de vizinhança. Pelo caminho seduzia uma Grace Kelly pré-aristocrata e desvendava um crime. Na altura em que eu próprio praticava esta actividade, admito que dava jeito ser fumador. Enquanto o cigarro desaparecia em suaves baforadas, observava toda a agitação que se desenrolava como uma montra humana nas traseiras dos prédios: pessoas a dormir, a ver televisão, a espreitar o frigorífico, a escolher a roupa. O mais interessante, claro, era a penumbra de onde saiam ou onde mergulhavam, onde adivinhava cenas de maior recato e intimidade. A noite pertencia aos pensamentos, e eles eram mais fortes que nós.

Não sou um homem moderno - II

Entro automaticamente em stress em qualquer loja de roupa ou calçado. Aparentemente, também sou o único que me incomodo com o facto de me impingirem chinelos por sandálias. Não sei que me parece ir com aquilo trabalhar, alguma coisa ia ficar deslocada (ou eu ou o ambiente).

Roma


Os sítios nunca são só a sua geografia. Sobretudo quando falamos de Roma, onde se sobrepõe uma profusão de referências e estratificações históricas, todas elas ainda visíveis e parte integrante da superfície da cidade. Fellini procura traduzir essa simultaneidade e omnipresença do tempo dentro do espaço, produzindo uma obra caótica, praticamente desprovida de montagem narrativa, em que se acumulam épocas e espaços de forma aparentemente anárquica. O resultado é bastante desequilibrado, mas ainda assim pode despoletar um desejo inquietante de fazer parte do turbilhão. Afinal, que melhor lugar para assistir ao fim do mundo, como nos diz Gore Vidal numa sequência, do que nessa cidade tantas vezes morta e ressuscitada? Faltam 15 dias.





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