Olhá competência!
Estou contente. Amanhã certifico mais nove adultos. Bem sei que nestas andanças temos um papel por vezes ingrato: validamos sobretudo as competências que, neste momento, a sociedade, e sobretudo o mundo de trabalho, elege como fundamentais para qualquer cidadão. Poderiam ser estas, mas poderiam ser quaisquer outras, e estou ciente que o meu/nosso esforço por tentar valorizar o que tem sido até agora esquecido por todos, a começar pelos próprios candidatos, nunca é totalmente conseguido: por déficits na troca linguística, por dificuldades mútuas na decifração de códigos individuais, pela necessidade de cumprir metas ou pela urgência que os indivíduos transportam, as barreiras sucedem-se e as pontes revelam rapidamente a sua fragilidade. Mas ocasionalmente os milagres acontecem.
Para quem não está a par, refiro-me ao processo mais conhecido como RVC - Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, que permite a pessoas com mais de 18 anos obter um grau de escolaridade com base num balanço do seu percurso pessoal e profissional. Ainda hoje uma delas me confrontava com esta dificuldade, que consubstancia na perfeição o que eu considero um verdeiro dilema ético: o seu percurso é caracterizado por uma série de experiências de vida tão absolutamente extraordinárias como socialmente questionadas. Desde petiz que se iniciou nos meandros da economia paralela, tendo já adulto vindo a ser preso no Brasil por tráfico de materiais electrónicos. Desde adolescente assume-se como toxicodependente, estando actualmente abstinente. Partilha regularmente a sua vivência em escolas e outras entidades através de ONG's anti-racismo. Uma verdadeira flecha de incorrecção política a desafiar os limites de um processo politicamente correcto.
Olhe, senhor, são vidas!
P.S.: a imagem, obviamente, é do Magritte, e estou grato a uma certa aula onde me relembraram com ele o poder destabilizador da arte.