Correspondência LGBT

E isto é um excerto de uma resposta minha às inúmeras cartas de desprezo pelo trabalho associativo, geralmente fruto de homofobias internalizadas, que recebia enquanto colaborador de um grupo LGBT há uns anos atrás:

Julgo compreender a frustração e revolta de quem não se sente representado por organizações que se assumem como porta-voz de uma vontade comum. Contudo, compreendo-o apenas até ao ponto em que essa revolta se alimenta de um silêncio passivo. Acho que as associações só podem sobreviver (partindo do pressuposto, que partilho, de que elas devem existir) se se constituírem como catalisadoras de múltiplas vontades numa direcção comum que não destrua, antes deixe a descoberto essa multiplicidade (...) Aqui refiro-me a tudo o que possa caber nesse vago entendimento do que é ser gay, seja ele o mundo ‘podre’ (a expressão é sua, ainda que ressalvada mas não redimida pelas aspas), o ‘clean’ ou outro qualquer. Não sei de que lado estão os juizes da moral. Talvez o sejamos todos, mas não me parece que partir da nossa própria percepção individual do mundo para julgar como mau ou bom o que nos rodeia seja um bom princípio (...) O género é uma construção social e como tal pode ser apreendido e socializado por qualquer pessoa. Para além do mais, não nos podemos esquecer que existem actualmente muitas situações infantis de carência gritante (eu sei-o por contacto profissional diário) que poderiam ser resolvidas muito simplesmente pela adopção por parte de casais estabelecidos e motivados, já para não falar das muitas situações que já existem e que deixam a criança sem qualquer tipo de enquadramento legal e, como tal, desprotegidas. É como tal, pelo próprio interesse da criança (argumento arvorado pelos detractores), que se reivindica este direito (da adopção por casais homossexuais) (...) Enquanto cidadão espero poder dar o meu contributo para que outros não passem pelo silenciamento e violência, simbólica e física, que fomos obrigados a suportar durante demasiado tempo. Não se trata de uma birra exuberante, esquerdista ou pequeno burguesa. Milhares de homossexuais foram enviados para campos de concentração e coisas semelhantes acontecem nos dias de hoje longe dos nossos olhos tranquilizados.
Eu trabalho para que Wilde não seja lembrado apenas como um excelente autor do século XIX mas também como uma vítima do pior que o ser humano consegue produzir, como o reflexo hediondo da pintura no final da história.
Para fundamentar melhor a sua resposta (que fico a aguardar) aconselho a prestar atenção às actividades que as associações, que tanto parece desprezar, têm levado a cabo, voluntariamente, nos últimos tempos: ciclos de cinema, debates, exposições, publicações, acções nas escolas e (sim!) festas, e não apenas ao discurso simplista e redutor dos media.
Quanto à educação sexual nas escolas confesso que não compreendo a sua reactividade. Estamos a dizer que é preferível manter os jovens na ignorância, fechados nesse mundo de sombras e angústias que são os preconceitos? Acaso ficou com a ideia que pretendemos mostrar filmes pornográficos e como ter boa performance na cama? Na experiência que já tive com adolescentes, trata-se simplesmente de procurar responder a questões tão simples e pueris como: o que é um homossexual e porque é que isso é uma coisa esquisita para a sociedade. Ou de tentar transmitir uma ideia positiva da diversidade. A escola pública não é neutra!! Não sejamos ingénuos. Não se trata de paranóia, mas sim de constatar como se constrói a ideologia, desde a primeira infância, da sociedade como um espaço com coisas ‘normais’ e naturais’ e coisas desviantes e aberrantes. Concordo com a arte como espaço pedagógico privilegiado mas não a quero identificar com o cliché banal (ideologia, mais uma vez) do gay com veia criativa e sensível.
A decadência é um ponto de vista. A cidadania um acto de construção participada.


PS: esta é a segunda versão do post, a primeira vinha com um cabeçalho incorrecto que enviesava a leitura. Penso que assim se percebe melhor (obrigado veado_)

1 Comentário:

  1. Major Tom disse...
    Esta foi a minha resposta. Vai num tom pessoal porque esta carta em particular era especialmente ácida e não me contive. Hoje em dia não escreveria este tipo de coisas (até porque já não concordo com algumas delas, isto já tem uns anitos). Talvez o que menos surpreenda é que estas cartas viessem assinadas por indivíduos que se diziam homossexuais, mas que se afirmavam sentir agredidos pela visibilidade das associações.

Deixe um comentário







Recomenda-se


Outras paragens



anodaorquidea[at]gmail.com
 

© O Ano da Orquídea 2004-2007