As homofobias de Daniel Borrillo
No meio dos projectos de acabar com o atraso acumulado de leitura de romances, ainda arranjei tempo (é incrível o que se consegue fazer numa ilha onde não se passa nada) para este pequeno mas muito pertinente ensaio. O autor alerta para a necessidade de combater a homofobia, que equipara a outras fobias: xenofobia, racismo ou antisemitismo. O que implica compreendê-la e descobrir as suas raízes, por um lado, e educar para a diversidade como medida de profilaxia. Avança ainda aquilo de que já me havia inteirado: que a tentativa de encontrar as causas da homossexualidade é em si mesmo uma atitude homofóbica. Passar de uma perspectiva para a outra constitui uma mudança epistemológica e política premente. Segundo Borrillo, ainda, a homofobia assume-se também como uma espécie de guardiã das fronteiras sexuais (hetero/homo), produzindo uma 'vigilância de género' (masculino/feminino), e contribuindo para que o desejo (hetero)sexual actue mais como dispositivo de reprodução social do que de reprodução biológica. Estabelece-se ainda uma distinção fundamental entre homofobia irracional, expressão mais emotiva da fobia que se traduz em medo, asco ou repulsa, e homofobia cognitiva ou social, que se articula na perfeição com a ideia liberal da tolerância. Esta última, bem familiar entre nós, resulta no facto de ninguém negar a homossexualidade ou até adoptar um atitude paternalista, sem que contudo se questione o status quo em termos de direitos efectivos. É o típico "não tenho nada contra", expressão eloquente da arrogância dos dominantes.
Um dia sem mim
Quando os U2 eram os U2, escreveram uma letra que rezava logo no início: "I'm starting a landslide in my ego" e que terminava com "a day without me". Parece-me fantástica esta ideia de podermos continuar a existir, mas sem toda esta tralha que arrastamos diariamente. Inventar outra pessoa, desconhecida para o mundo, e interagir com esse novo material humano e intelectual, de uma forma não viciada e cristalizada. Poder sentir novamente supresas e provocar estragos, forjar uma nova identidade e deixar de me sentir sempre, invariavalmente, eu. E sobretudo, deixar de ser administrador do condomínio e receber diariamente as queixas tacanhas dos meus vizinhos de prédio...
O maravilhoso mundo de Ralf König
Desde que encontramos o primeiro exemplar, foi amor à primeira vista, como acontece frequentemente com muitas das suas personagens. A colecção vai aumentando a cada visita ao burgo espanhol, até porque lá têm toda a obra traduzida (também existe tradução noutras línguas, para quando em português?), e felizmente o alegre alemão tem uma produção prolífica. As histórias parecem sempre muito próximas de nós, e na verdade podiam retratar qualquer lugar. Para além disso, também as referências ao universo LGBT podem ser transportadas sem mossa para qualquer país ocidental, o que torna este tipo de humor praticamente universal. Para além do interesse de retratar vivências do quotidiano de homossexuais, abordando questões como a afectividade, a sexualidade, a homofobia, os novos modelos familiares ou a SIDA, é desarmante a forma como o faz sem qualquer tipo de censura ou juízo moralizante, ainda que tomando posições críticas e abertamente políticas. Para ler sem preconceitos, e recomendável a apreciadores de banda desenhada de qualquer orientação sexual.
Efeito Chueca
Em período de campanha eleitoral autárquica, ainda não ouvi ou li uma única palavra que se referisse à temática LGBT (lésbica, gay, bissexual e transgénero), ressalvando contudo o meu relativo alheamento e desinteresse. Num primeiro relance, dificilmente se fará a associação entre o papel de uma autarquia e estas questões. Contudo, ao tomar notas para um debate promovido pelo Bloco de Esquerda, que não chegou a acontecer, realizei algumas possíveis consequências dessa relação (em parte resultantes de uma interpelação da associação em que colaboro aos partidos candidatos no Porto): primeiro aspecto – a criação de um espaço de apoio e orientação LGBT, à semelhança do Centro Comunitário Gay e Lésbico de Lisboa e de muitos outros espalhados por essa Europa fora, segundo a matriz norte-americana; segundo – uma intervenção no sentido da articulação das respostas sociais a nível local às vítimas de homofobia; terceiro - a monitorização do registo e da aplicação das uniões de facto, a começar pelo próprio corpo de funcionários; quarto - a promoção de uma imagem positiva e gayfriendly da cidade, através da inclusão de informação LGBT nos postos de turismo e nas campanhas de promoção no exterior; quinto - o apoio a iniciativas culturais e de sensibilização LGBT, tais como exposições, debates, ciclos de cinema ou outros eventos; sexto - a promoção de iniciativas de educação sexual nas escolas do primeiro ciclo e de formação dos professores para a diversidade. Isto seria apenas numa reflexão inicial. No debate que não chegou a acontecer, cujo tema seria “Activismo LGBT e a cidade”, penso que seria importante também sublinhar a necessidade da esquerda provar que realmente valoriza o efeito diferenciador dos critérios culturais e identitários, incluindo o da identidade de género ou a orientação sexual, no binómio inclusão/exclusão, ao mesmo nível que sempre colocou o critério económico ou social. Só assim poderá conquistar a credibilidade e confiança que parece ter logrado, por exemplo, junto de nuestros hermanos. Ou serão apenas impressões pessoais resultantes da recente passagem na madrilena e tão acolhedora Chueca?
O piano de Sassetti
Com Miss B. tenho desenvolvido o hábito, desde há uma boa dezena de anos (meu Deus, há quantos nos conhecemos?) de me arrepiar com uma meia dúzia de canções. Geralmente o estilo é jazz. Apesar de me rir num canto cá dentro, não consigo deixar de sentir calafrios cada vez que ouço 'Laura' pela Jeane Lee, o Chet Baker com 'You don't know what love is' ou aquela versão do Kurt Weill pela Betty Carter. A última experiência tem sido todo o álbum 'Nocturno' do Bernardo Sassetti. À noite, com as luzes apagadas, parece-me sentir aquele piano mesmo atrás do sofá, entre a mesa e a janela, a explicar-me como é que me hei-de reconciliar com o fim de mais um dia.
Middlesex
Se uma imagem pode valer por mil palavras, ainda assim eram necessárias umas quantas para traduzir as 521 páginas de Middlesex, um daqueles calhamaços que eu só me atrevo a ler nas férias, apenas porque eu sou teimoso e gosto de levar as coisas até ao fim (tenho uma meta pessoal: se leio até à página 70, tenho que ler o livro todo) e porque coisas deste tamanho não se conseguem ler deitados na cama, a não ser que queiramos torcer os pulsos. Para mais, a Dom Quixote preparou uma edição que é um regalo para a vista, e fica sempre bem passeá-la pelas praias das baleares. O que está lá dentro: bem, cada um encontrará coisas diferentes, presumo, porque numa odisseia destas temos espaço para escolher o nosso protagonista e a época que mais nos atrai (a narrativa estende-se quase durante um século e algumas gerações). Para quem, como eu, se interessa pelas complexidades e quebra-cabeças da identidade sexual, é altamente recomendável, embora o livro me pareça quebrar só um bocadinho o interesse no desenlace final, precisamente quando se expõe a ambiguidade do personagem principal, que é também o narrador omnisciente. Nevertheless, Jeffrey Eugenides é para seguir com muita atenção. Pessoalmente, não encontrei um único parágrafo que lido independentemente deixasse de ter interesse literário, o que, tendo em conta a envergadura do que estamos a falar, lhe reconhece mais talento do que algumas gerações de escritores conseguem reunir. Também lhe agradeço ter-me relembrado que, numa fase inicial de gestação, qualquer feto possui gónadas que só mais tarde assumirão caracteres sexuais masculinos ou femininos. Enquanto esse momento não chega, até nesse derradeiro baluarte biológico somos idênticos.
Formentera Blue
E este azul que não me sai da cabeça! Dou por mim a trabalhar em frente ao computador e começo a pensar na cor daquele mar, no odor dos pinheiros, no som das rodas da bicicleta... Alguém me tinha avisado que conhecer Formentera era perigoso e parece que tinham razão... (antes da partida nós avisamos que iriamos falar destas férias até à nausea!)
Formentera em palavras
A partir do momento em que partimos de Formentera, no exacto segundo em que o barco recolhe a âncora e se levanta a ponte do cais, já toda a ilha é um acontecimento pronto a escoar lentamente, como uma ampulheta, da nossa memória. A cada dia que passa, desaparece mais um recanto do fundo do mar ou uma peça de decoração da casa. Com o tempo, paisagens e divisões inteiras serão sugadas na voragem do esquecimento. Ficará, se calhar, apenas uma impressão geral da ilha como um pedaço de terra que não pertence ali, e que levantaria voo não fossem o peso das pessoas e das bicicletas ou as raízes das figueiras, que pelo tamanho devem estar agarradas ao subsolo do mundo. Talvez também fique aquele barulho que o mar calmo faz ao bater nas concavidades das rochas, que se assemelha estranhamento ao riso contido dos amigos quando se apercebem que alguma coisa pateta aconteceu a um deles. O resto será incógnita, como a impressão de que os seres marítimos se familiarizavam paulatinamente connosco, chegando a ficar assustadoramente calmos, como se aguardassem resignados a chegada de um tsunami; ou a imagem da minhoca luminosa que os faróis das nossas bicicletas desenhavam na estrada, à noite; ou o concerto de aniversário de um septuagenário local, venerado como se de uma antiga estrela rock exilada se tratasse. Enquanto aguardávamos no cais o derradeiro adeus, víamos chegar os últimos turistas da época estival, já sem esperança e com t’shirts a dizer ‘love stinks’. Também ouvíamos o vento de Setembro na copa das árvores, e pensávamos na possibilidade de viver uma outra vida.
Porto - Madrid - Formentera - Madrid - Porto
(mais fotos seguem dentro de momentos)
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Parar, por fim
As orquídeas vão de férias, finalmente, para que mais tarde possam florescer, tal como o amarelado de algumas folhas de árvore é já a promessa antecipada de um húmus que se transformará numa nova Primavera (ok, já é o delírio da partida a falar por nós...). Se realmente cumprirmos o nosso objectivo (que é ficar lá o tempo suficiente para ter vontade de voltar), daqui a quinze dias cá estaremos, a relatar de novo a fotossíntese do pensamento (pronto, foi a última bio-metáfora). Até ao nosso regresso, com a promessa de relatos de Formentera até à nausea!
Ass: Venus as a Boy e Major Tom
Antisemitismo vs homofobia
Estas são algumas das afirmações difundidas pela propaganda nazi com o objectivo de instigar o ódio pelos judeus nas sociedades dos anos 30:
"Os judeus correspondem a 1% do total da população, controlam a política, têm melhores empregos e ganham mais dinheiro, espalham doenças como ratos, são responsáveis pelas maioria dos crimes, são prevertidos e doentes e violam os mandamentos da bíblia."
Estas são algumas das afirmações que são proferidas nos dias de hoje por inúmeras igrejas, políticos de direita, órgãos de informação e responsáveis por vários grupos sociais contra os gays:
"Os homossexuais são uma minoria social, possuem um forte lobby político, controlam os media, possuem bons empregos e ganham acima da média, são responsáveis pela difusão do HIV e de outras doenças sexualmente transmissíveis, cometem 1/3 dos abusos sexuais contra crianças, têm um estilo de vida anormal, e à luz da bíblia cometem um pecado mortal."
Qualquer semelhança NÃO é pura coincidência! Dá para pensar...
Para mais informações clica aqui (via R&V).
Os recém-amigos
O recém-amigo é aquele que acabaste de conhecer num bar porque tinham um conhecido em comum, ou que apareceu para jantar porque namora com alguém, e por quem sentes uma afinidade súbita, que te impede de descansar enquanto não souberes absolutamente tudo o que precisas de saber sobre ele, e que te inflama a vontade de te dar a conhecer como um novo eu, todo fresco, novo e supreendente. As palavras são o poderoso combustível desse encontro, mas gestos e olhares também são benvindos, sobretudo se implicarem uma espécie de cumplicidade, do tipo: "tu sim, sabes o que eu quero dizer". As pontes são intermináveis: gostam das mesmas bandas, dos mesmos livros, possuem idiossincracias em comum, como gostar do Homem-Aranha, saber o nome de realizadores obscuros ou ser incapaz de memorizar um número de telefone. As diferenças de repente já nem te parecem assim tão fáceis de definir, ao ponto de seres capaz de apoiar fervorosamente uma coisa que ainda no dia anterior atacaste com a mesma ferocidade com outra pessoa. Naquele instante, o mundo, com todos os seus problemas e complexidades, torna-se intelegível, mas apenas por estes dois olhares, o teu e o dele. Ainda não sabem se aquilo vai dar em amizade, mas pensam e agem como se fossem a reincarnação de entidades que se contactaram noutra vida e que não tiveram tempo de acabar a conversa.