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Não quero ser mal entendido. Eu não acredito numa essência feminina. Mas gostei muito do novo Almodóvar. Se eu fizesse um filme também gostaria de mostrar um retrato desse universo, o das mulheres enquanto hipótese de comunidade de indivíduos que se encontram e tecem relações nas trevas da dominação masculina, recriando-se e fortalecendo-se muito para além dessa fronteira. Gostava especialmente de mostrar mulheres como aquelas, que carregam às costas de forma tão inseparável o duplo peso da tradição e da emancipação, do lar e do trabalho, a imagem perfeita da modernidade em plena mutação e apanhada nas sua terríveis contradições. Almodóvar sabe que o próprio credo maternal é uma invenção do Homem. Veja-se como tantas das suas personagens adoptam ou são adoptadas por outras, sem qualquer critério genealógico. Essas parecem ser as provas de uma crença mais profunda numa humanidade que não desapareceu, apenas se encontra sufocada pela violência da civilização e dos seus tecidos ideológicos, sendo necessários momentos de ruptura (como os que atravessam as várias narrativas do filme) para ela poder emergir e tornar-se visível. Não é por acaso que a personagem da Carmen Maura é fantasmagórica; ela é realmente o espectro de um tempo que já não existe, em que as fronteiras entre homens e mulheres eram tão simbólicas como físicas (como aquela cortina que os separa na magnífica cena do velório), em que o quotidiano se fazia tanto de cheiros e saudações ruidosas (pequenos momentos altos do filme) como de prepotências e crimes impunes. A não perder por nada deste mundo.
Miau, miau... MIc's