Literatura aos molhos
O aniversário de uma ex-namorada que se tornou amiga é sempre um bom pretexto para um reencontro anual. Aproveitei a proximidade do Corte Inglês e lá fui espreitar a secção dos livros. Nos escaparates, a habitual panóplia colorida de best sellers e lançamentos de Outono para rápida digestão. Pelo meio, alguns poucos clássicos. Retirei um Jorge de Sena e uma voz ao meu lado disse "prefere os clássicos? Já leu o último dele? Aliás o único romance, Sinais do Fogo? É um excelente retrato da época do fascismo". Anui com um sorriso amarelo, ao perceber que se tratava do funcionário da secção, vestido como um funcionário bancário à caça de clientes. "Mas esteja à vontade". Dei a volta ao escaparate e desta vez retirei um da Agustina, cujo título não conhecia. "Ah, o último da Agustina! Normalmente ela tem um estilo rebuscado, há quem não goste. Desta vez ela procurou fazer algo diferente, interessante". Incomodado, voltei a pousar o livro. Não queria acreditar que me estavam a tentar impingir livros, como quem vende um crédito imobiliário ou um colchão ortopédico. A medo, e um pouco precipitadamente, escolhemos o último do Luis Sepúlveda e fomos pagar. Ainda receei, por instantes, que ele acrescentasse algum comentário, do estilo: "É um escritor que alia o domínio da tradição do conto com a consciência social, um belíssimo representante da expressão escrita latino-americana. Uma excelente escolha!". Mas o homem de gel e gravata, como uma caneta na mão, apenas comentou, com um ar pouco entusiasmado e num tom desanimado: "Perderam foi a sessão de autógrafos". Duvidei seriamente que tivesse alguma vez lido qualquer dos livros.
Lembra-me um restaurante onde fomos e em que o empregado reagiu espontaneamente à minha escolha com "Ah! excelente, é o meu prato favorito" e depois se sentiu na obrigação de fazer um sorriso amarelo e comentar para o meu companheiro: "A sua escolha também é boa". E depois, atrapalhado com a falta de sinceridade, afundou-se ainda mais ao dizer: "Aliás, tudo o que está na ementa é bom."
De facto, a comida era boa, mas nunca mais tivemos vontade de lá voltar...
andrém