Nós e os outros de nós



Um: o pretexto
Nas raras ocasiões em que decido dar uma nova chance à televisão, os momentos que continuo a preferir são aquela rúbrica 'no comment' na Euronews. São pequenos excertos de filmagens recolhidas em qualquer parte do planeta, onde apenas a data e o local é identificado numa pequena legenda. Nada mais do que vemos é explicado ou comentado, deixando-nos, enquanto espectadores, espaço para alguma margem de interpretação ou simplesmente perplexidade, o que exercita o cérebro antes da inebriante corrente de mensagens pré-fabricadas que se seguirão.

Dois: a analogia
Tentava ontem convencer um grupo de mulheres, todas licenciadas e com experiência de formação, dessa mesma necessidade de um olhar aberto a todas as possibilidades na construção de uma relação (discutia-se a grande questão da partilha das tarefas domésticas, e foi interessante para mim constatar novamente que neste âmbito o grau académico não é uma variável determinante). Nem avancei com o questionamento do modelo da monogamia sexual ou afectiva (podia ter dito que enquanto seres sociais lidamos melhor com a segunda do que com a primeira), mas simplesmente com a própria possibilidade de repensar a conjugalidade como a (in)capacidade de conciliação de universos inevitavelmente distintos e com algumas zonas de intersecção impraticável. Também introduzi o tópico da pressão social para o casal, em detrimento da opção igualmente legítima de viver sozinho (quase ninguém consegue evitar elencar o conjunto de causas e outras tantas estratégias de resolução da situação, apresentada como deficitária e socialmente 'perniciosa'). No final destas discussões, apercebo-me sempre que, tal como o olhar conduzido pelo noticiário televisivo, é mais simples e pacífico encarar a vida como um suceder de eventos que conduzam à realização da norma.

Nostalgias




Stromboli, Junho 2006

Caro diário...


Evidência: é uma semana cinzenta. Não tenho conseguido andar de mota e o trânsito de carro anda impossível. A somar: ontem fui a uma milonga, e mais uma vez não tive coragem para ultrapassar a minha timidez. Fiquei só a olhar para a pista.
Comecei aquela formação para renovação do CAP de formador. Apanhei um cursito financiado, e ainda por cima sobre Igualdade de Oportunidades, e não perdi tempo para me inscrever. A turma são apenas oito pessoas (comigo), e todos formamos aquilo a que na minha rua chamamos uma bela colecção de cromos que está ali basicamente to get over with it. Ainda só tivemos uma sessão de apresentação, mas já deu para ver. Querido diário, hoje vou ter a segunda sessão, e acho que vou ter que sair do armário. Já não tenho estômago para bocas sexistas ou homofóbicas, assim adianto-me e presenteio-os com alguma coisa para contarem em casa. Só tenho que decidir depois em que grupo é que fico: se no dos homens ou no das mulheres.
Será que o céu vai limpar?

A luz de Lisboa...


... é uma luz... boa.

Olhar o olhar

Não são poucos os trabalhos que procuram denunciar a linguagem como uma forma de pensar a realidade de uma forma preconcebida. Ao falar, ler ou escrever, eu remeto para um conjunto de símbolos e significados que não são culturalmente neutros, e advém daí a impossibilidade de conceber, por exemplo, uma investigação totalmente objectiva e imparcial. O preconceito, contudo, é também uma questão de olhar, olhar que é também uma construção em que todos mergulhamos e em relação ao qual necessitamos de reflectir de forma permanente (ou seja, não basta constatar que existe um pré-olhar para que ele deixe de existir de modo definitivo). É o que pode acontecer com uma visita ao Centro de Português de Fotografia, onde ainda se pode ver a exposição "África pelos africanos", simplesmente uma colectiva de fotógrafos africanos que nos apresenta uma pequena colecção de olhares do século XX (a provar que os movimentos sociais não só uma questão de voz, mas também de visão). Há uns anos atrás, também um clip de uma banda britânica deu que falar e fez-me pensar, pela eficácia com que conseguiu expor o modo como o nosso 'olhar de género' se apropria da realidade. Para os que não conhecem, um aviso à navegação: não devem ver no local de trabalho.

PS: o "Smack my bitch up" do título e do refrão é uma expressão de palco que quer dizer basicamente: 'vamos a isto!'

Eduquem-se!


Passei uma boa parte de um dia de azáfama num seminário com o pouco auspicioso título 'Aprendizagem ao longo da vida'. É engraçado perceber como toda a lógica das intervenções está nestas ocasiões impecavelmente montada para se falar do que há a fazer com a escola enquanto conjunto de práticas e objectivos (para combater, por exemplo, essa grande construção discursiva que é o insucesso escolar). Mas nunca, nem por um segundo, se vislumbra a possibilidade de ver a aprendizagem como algo que pode ocorrer fora desse espaço mitificado. E se se vê, a questão nunca será colocada nos mesmo termos, mas antes como uma curiosidade que empresta como que uma espécie de exotismo multicultural aos desvios à norma (essa sim, repetidamente reiterada em tom melodramático pelo elogio do aluno que se adapta brilhantemente ao modelo e que demonstra assim a sua eficácia). À noite, no jantar semanal da minha primeira família, a minha irmã lamenta-se do mesmo, no final da primeira semana de aulas: os miúdos não são mais do que veículos das aspirações e práticas desse grande e inquestionado (re)produtor do saber que é o professor, e dessa implacável máquina de trituração de metas físicas e de propulsão de percursos de exclusão que é o sistema educativo actual.
PS: as orquídeas descem à capital para apanhar o que falta do 10º Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa. Até já.

Correr, correr, correr...


Um trânsito apocalíptico impediu-me de entrar no Porto para a habitual corrida no Parque da Cidade. Frustrado, regressei a Gaia, decidido a experimentar o percurso da marginal até à Afurada. Reticente, estacionei o carro, equipei-me qual super-herói a trocar de identidade, mp3 em acção, e lá fui em passo decidido. Uns metros à frente, já todo eu era entrosamento com a paisagem, um rapaz também a correr meteu conversa. Não consegui evitar alguma desconfiança, afinal de contas vivemos numa cidade. Numa leve desilusão inicial, apercebi-me que o atraente estranho apenas queria conversar. Correr é uma actividade solitária, dizia-me, mas o tempo passa melhor quando se dão duas de letra. Ficámos a saber pouco da vida um do outro, o tema foi a corrida em si: percursos, vantagens ('nunca mais me constipei e ando de manga curta às vezes até no Inverno'), sensações, projectos pouco ambiciosos de correr até não poder mais. Despedimo-nos com um 'até à próxima', enquanto eu refazia o percurso de volta e ele prosseguia na sua meia maratona diária. Prometi voltar a repetir a beira-rio, 'pode ser que nos cruzemos por aí'. Senti-me parte de uma tribo.

À semana a doer...

O autor deste post encontra-se em merecida convalescença, depois de um dia inteiro de entrevistas nessa terra de contradições várias que dá pelo nome de Fafe. Desta amostra, várias mulheres desempregadas das confecções, com famílias inteiras a cargo, indivíduos com o sexto ano de escolaridade e que não conseguem escrever mais do que o nome próprio, e uma mulher com um passado trágico, não tão raro por estas bandas: assistiu à morte acidental da irmã com uma arma carregada e mal guardada. Felizmente as segundas-feiras terminam com uma milonga e boa companhia...

Pépé #2


The boys wanna be her, the girls wanna be her


Deborah Harry, matriarca das mulheres rockeiras: um pé na provocação arty, outro na pura perfomance pop, já com uma grande descendência (ver exemplo de descendência em baixo).

A autarquia mete nojo

Não sei como ainda fico surpreendido por este tipo de notícias. Surpreendido, incomodado e furioso! Não voto no Porto porque não me deixam mas a cidade também é minha! E custa-me muito ver um bando de filhos da p*** a gerir os destinos de uma cidade simbolo dos ideais liberais e democráticos. Já chega de prepotência, de arrogância e mania que são os donos da cidade! Já chega de erros políticos, sociais, económicos e culturais!
Se os senhores eleitores deste concelho ainda não abriram os olhos e viram o erro que fizeram ao votar neste executivo vou pensar seriamente em migrar para outro lado! Com estas brincadeiras vão passar-se 8 anos e a cidade estagnou, regrediu e ficou mais pobre. Basta de ignorância!
Repito, estou furioso!

Volver


Não quero ser mal entendido. Eu não acredito numa essência feminina. Mas gostei muito do novo Almodóvar. Se eu fizesse um filme também gostaria de mostrar um retrato desse universo, o das mulheres enquanto hipótese de comunidade de indivíduos que se encontram e tecem relações nas trevas da dominação masculina, recriando-se e fortalecendo-se muito para além dessa fronteira. Gostava especialmente de mostrar mulheres como aquelas, que carregam às costas de forma tão inseparável o duplo peso da tradição e da emancipação, do lar e do trabalho, a imagem perfeita da modernidade em plena mutação e apanhada nas sua terríveis contradições. Almodóvar sabe que o próprio credo maternal é uma invenção do Homem. Veja-se como tantas das suas personagens adoptam ou são adoptadas por outras, sem qualquer critério genealógico. Essas parecem ser as provas de uma crença mais profunda numa humanidade que não desapareceu, apenas se encontra sufocada pela violência da civilização e dos seus tecidos ideológicos, sendo necessários momentos de ruptura (como os que atravessam as várias narrativas do filme) para ela poder emergir e tornar-se visível. Não é por acaso que a personagem da Carmen Maura é fantasmagórica; ela é realmente o espectro de um tempo que já não existe, em que as fronteiras entre homens e mulheres eram tão simbólicas como físicas (como aquela cortina que os separa na magnífica cena do velório), em que o quotidiano se fazia tanto de cheiros e saudações ruidosas (pequenos momentos altos do filme) como de prepotências e crimes impunes. A não perder por nada deste mundo.

Matinália


A manhã começou tarde, luminosa e lânguida. A cama estava vazia e já se sentia actividade na casa: um teclar descompassado no computador e uma bola a sofrer torturas de gata. Depois do beijo, preparei com paciência e vagar o pequeno almoço e instalei-me com os suplementos do jornal do dia anterior (eia, o Mil Folhas agora sai à sexta!). Bebi dois cafés e troquei olhares com a janela. Decidimos sair. Como já tem acontecido, escolhemos o destino à porta da garagem. Seguimos em direcção ao mar, com livros no tablier. O Sol estava filtrado por um nevoeiro glauco e misterioso, que emprestou à praia uma atmosfera selvagem e sebastiânica. Não se via quase vivalma. Deixei a água revigorar os tornozelos e conversamos sobre as próximas viagens, tema inesgotável mesmo quando não há férias nem dinheiro. Foi o estômago que nos obrigou a regressar. Desta vez cozinhei eu e ele tratou da louça. A gata derrotou um grande insecto.
A tarde ainda não aconteceu.

Pépé: é pró menino e prá menina



Mais duas peças concluídas, em trabalho de equipa: desenho meu, execução da mana em bordado. O resultado? Produções Pépé (a minha alcunha de tio), disponíveis na casa mais próxima... aqui do bairro! Mais exemplares avante...

Refresso a Ítaca


Há projectos adiados que simplesmente nos apercebemos que não vão acontecer. Como ler a Odisseia em verso. Acabei por me ficar por uma versão juvenil, adaptação do João de Barros em prosa do poema de Homero sobre as aventuras de Ulisses, "herói e navegador da Grécia Antiga". Não me ocorre nada mais do que o óbvio para descrever as impressões da leitura da segunda história mais conhecida de sempre (segundo consta). Fico à espera que a minha vida se adeque silenciosamente às metáforas do épico...

A presença de Marisa


Ontem encontrei-me com uma mulher. Primeiro só lhe ouvi a voz. Cantava sobre o seu infinito particular num bréu maternal. De vez um quando, uma luz ténue iluminava o rosto e percebi um violão no seu colo. Depois mudou de melodia e todo o cenário incandesceu de uma luz branca. Rodeava-a uma pequena orquestra, toda vestida de negro. O ritmo era um samba lento, quase uma morna. Cantou e cantou, trocando o violão por um bandolim, e aproximou-se, desafiando a sua própria timidez (ou, nas suas próprias palavras, o seu pernambucolismo). Senti mais uma vez que o espaço era imenso, e que precisávamos de estar a sós, eu e ela. Mas na imensidão daquele círculo percebi dois mil vultos que nos separavam. Saravá, Marisa.

Energia de activação, pró bem da nação

Sempre me pareceu coerente perspectivar a acção humana como o resultado da capacidade do sujeito agir, condicionado por estruturas que balizam e condicionam essa acção. Os cientistas sociais não são consensuais nesta matéria. Para uns as estruturas são determinantes, para outros, pelo contrário, tudo é construído pela interacção dos sujeitos. Na sua permanente procura de sínteses, Giddens concebeu uma dualidade da estrutura, em que esta de certa forma constrói a acção do sujeito, mas por seu turno é transformada pelo próprio sujeito dotado de agência (nem tudo é negrume no reino da Sociologia). Mas que pensar de situações em que todas as condições parecem estar reunidas para que algo aconteça, mas não acontece? O sujeito é cego? Ou carece daquela energia de activação de que me falava um amigo, explicando-me o porquê de não praticar desporto? É o mesmo que explica que um mestrado não ate nem desate ou que um país não ponha em prática a liberdade que conquistou?

Coisas que já soube fazer

- tocar uma partitura de Bach no piano
- peças em macramé
- a esparregata
- partir um ovo sem misturar clara com gema
- jogar andebol
- usar o SPSS
- tolerar a intolerância
...

Já lá vão dez anitos...


Arranca este mês mais um Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa. A sua décima edição! Como estamos velhos! :p
Na minha opinião é, sem sombra de dúvidas, a iniciativa cultural LGBT mais interessante que se faz em Portugal. Só é pena que continue centralizada em Lisboa. Vamos a ver se este ano ainda conseguimos dar uma saltada até lá. Há filmes para todos os gostos, é só escolher.
P.S. - Hum, gostava mais dos primeiros cartazes do festival... É uma delícia ver tantos logotipos de patrocinadores!

Wild at heart


Recordo as imagens e volto a sentir o estômago a pressionar a respiração. Teria catorze anos, já estava habituado a sentar-me sozinho no cinema. Foi no Batalha, por isso sobrava espaço à minha volta e na minha cabeça. Sailor e Lula cantavam e dançavam canções de Elvis e dos Motorhead, na sua sui generis versão de um Verão de amor. Eram perseguidos pela Bruxa má do Oeste (a mãe, na imagem). Os rostos eram os de Laura Dern, Nicholas Cage (difícil de acreditar que é o mesmo, sobrinho de Coppola), Diane Ladd (mãe de Laura, mulher de Bruce Dern, prima de Tennessee Williams), Isabella Rosselini (filha de Ingrid e Roberto, mulher do realizador, à época), ou William Dafoe (homem do teatro). Um clã de nobres genealogias, portanto, reunido sob a estranha batuta de David Lynch, que representa sozinho uma visão de cinema ainda sem descendência e que remete tanto para Buñuel como para George Méliès.
Ecrã negro. Grande plano: um fósforo acendeu em toda a tela, como que a avisar que quem entrasse na história tinha que se preparar para arder com ela. O coração era um selvagem reticente que procurava abrigos onde pudesse combater a sua própria combustão.





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