A alma das coisas


Tenho uma tendência zen em relação aos objectos. Talvez nunca tenha verdadeiramente ultrapassado uma fobia adolescente contra o materialismo, fruto conjunto de um marxismo mal digerido e de leituras como o "Sidharta". Custa-me sempre infinitamente mais adicionar mais objectos ao meu pequeno património do que desfazer-me deles. É como se cada coisa que nos pertence fosse mais um pequeno acréscimo de responsabilidade, mais um peso na âncora que nos dificulta a navegação na questionável metáfora aquática da vida. No final, são poucos os objectos que transportam uma hipótese de história. Como estas sapatilhas: passearam, correram, pintaram paredes e levaram-me do trabalho para os braços do namorado. Lixo com elas.

Do bloco para o tecido


Queria escrever sobre os amigos que vejo uma ou duas vezes por ano, e sobre esses breves encontros em que tropeçamos sobre a respiração para podermos dizer e rir sobre tudo o que não partilhamos durante aquela eternidade. O Herberto Hélder diz que os amigos se amam devagar. Eu não o colocaria de melhor forma. Por isso, e porque me custa que os amigos partam de novo, circulei nos meus ficheiros para tentar mudar de assunto. Encontrei esta imagem. É uma das que eu desenho e a mana borda numa t'shirt. Já há muitas por aí e só lhe falta um site para a coisa ficar mais organizada. Alguém por aí a precisar de mostrar trabalho?

Duriense


Um lacrau é um escorpião mais pequeno mas igualmente parecido com o bicho incubador dos Aliens; vive debaixo do solo e lembra-se de aparecer em bando ao anoitecer, quando fica mais fresco. Quando caminhamos no calor podemos colocar as mãos à cintura e ficar com os braços em arco: o ar circula nessa zona e ajuda a baixar a temperatura do corpo. Da mesma forma, no calor intenso é de evitar encher o estômago de água, porque ela acaba por aquecer também aí, provocando sensações de enjoo. Há vários tipos de gafanhotos: os castanhos vivem nas coisas castanhas, como a terra ou a madeira, e os verdes nas coisas verdes, como as folhas ou a erva.
Estas são apenas algumas das coisas que se aprendem numa aventura pelo Douro vinhateiro, descendo o rio de Kayak e caminhando entre as dádivas da mãe Natureza: figos, amoras, uvas premiadas, água fresca, e uma paisagem que pertence aos sonhos dos homens, quando eles respeitavam e temiam a magia que se esconde na terra.
PS: a Micas agradece com um grande miau os mimos e comida que os avós lhe trouxeram durante a nossa ausência.
Foto in Guia de Montanha

Não há ficção como a realidade

Um homem que diz odiar os judeus, argumentando que são um povo... racista. Uma mulher infectada com o HIV porque o médico achou que podia dispensar o preservativo nas relações sexuais com o companheiro, diagnosticado com Hepatite B. Uma rapariga que aos 17 anos já geria estabelecimentos de diversão nocturna. Um homem deixado à sua sorte pela comunidade religiosa onde se desintoxicou...
O local onde trabalho cada vez mais parece uma canção do Lou Reed.

A semântica do casal


"Cenas da vida conjugal". O filme que todos os pais deveriam mostrar aos filhos (ou deverei dizer antes as mães às filhas) antes de estes se porem com ideias matrimoniais. Nos idos de setenta e tal do século XX, dois actores no seu apogeu - a extraordinária Liv Ullman e o excelente Erland Josephson - dirigidos pelo seu mestre habitual, Ingmar Bergman, dissecavam até à medula a dolorosa experiência da vida em comum. Composto por vários capítulos - Inocência e pânico; A arte de fazer como a avestruz; Paula; O Vale de lágrimas; Os analfabetos; e No meio da noite numa casa às escuras algures no mundo - retrata o processo de dissolução de um casal após dez anos de casamento, através de diálogos estarrecedores e envolventes grandes planos, que procuram fazer o espectador mergulhar naquela intimidade emocional. Parece impossível voltar a assistir à mesma capacidade de enfrentar a crueza das verdades escondidas pelo quotidiano da vida a dois, seguramente não com esta intensidade e respiração, que atribui um significado a todos os silêncios e inflexões de voz. Não é extraordinário realizar quantos significados podem ter pequenas expressõs diárias como "então que fizeste durante o dia?".
Trinta anos depois reencontramos Marianne e Johan, o casal de protagonistas, em "Saraband", mas os propósitos são outros. Da ilha de Farö, na Suécia, para o resto do planeta.

Como ela se afogou


Edward Hopper. Summer Interior, 1909

E pronto. Noutra sessão de insónia, a madrugada encarregou-se de dar conta do que faltava do último livro (traduzido) de Jim Grimsley, autor caro cá em casa por "Um rapaz de sonho", "Consolo e alegria" ou "Boulevard". Desta vez, em "Como me afoguei", regressa ao universo da memória, que para ele parece ser sempre uma espécie de manifestação fantasmagórica que assombra os personagens, como um ectoplasma onde eles respiram com dificuldade. Não há nada de agradável nesta narrativa (demasiado prolongada, na minha opinião bastava um conto ou uma canção gótica para arrumar o assunto de forma mais económica), onde se fala da miséria e a ignorância da ruralidade americana dos anos quarenta, com todas as suas manifestações, descritas de forma eloquente, num estilo sonâmbulo, na primeira pessoa do feminino: a fome, a violência doméstica, a promiscuidade, a pedofilia, a exploração do trabalho infantil, ou a implacável ausência de luz num mundo sujo e visitado por monstros. Ou foi tudo impressão causada pela visita de Ellen, a pequena protagonista, ao limbo do meu próprio sono?

Narciso de grafite em papel de merceeiro

Balada da lula e da baleia


De regresso a uma sala de cinema, passados uns bons dois meses, pelas nossas contas. As alternativas em cartaz não encorajavam a saída e o calor convidava a outras andanças. Felizmente a temperatura esteve do nosso lado, e lá fomos ver A Lula e Baleia, por sugestão do marido. É um filme simpático, sai-se da sala com essa impressão. Não mexe com o estômago, mas é inteligente, bem escrito e com um punhado de boas interpretações (sempre gostei do ar de looser do Jeff Daniels, aqui com um papel à altura, uns vinte anos depois de "Selvagem e Perigosa", de um na altura mais promissor Jonnathan Demme). Há algumas piscadelas de olho cinematográficas e outras prendas para nostálgicos dos anos 80, altura em que se desenrola a acção. Há pontos em comum com outro filme onde Noah Baumbach esteve envolvido como escritor, mas também com outros trabalhos da fornada dos filhos dos baby boomers (Sofia Coppola, Spike Jonze ou Wes Anderson à cabeça): a desagregação da família nuclear, as dores do crescimento, os complexos (édipo e electra, entre outros) e a procura de genealogias afectivas, mas também o recurso a uma sonoridade e imagética que nos transportam para um tempo em que julgávamos que tudo morria aos 30 anos de idade. "On n'est pas serieux quand on a 17 ans"?

Desejo de Micas


Estava escrito, e mesmo com a opinião de uma colega de trabalho, que diz que isto corresponde ao cliché do casal gay, foi mais forte do que nós. Ainda estamos em período de estágio, portanto ainda não temos a confirmação oficial, mas tudo indica que, passados dois dias de co-habitação, a Micas nos vai adoptar por um longo período. Na imagem, segundos antes de uma ataque letal... de mimos.
PS: também não resisti em fazer um post sobre adoptar um gato, apesar de ser um cliché de blogues.

O valor da família


Acho que pouca gente se apercebe da dimensão das transformações do conceito de família nos dias que correm. É como se os novos formatos - casais homossexuais, vida a 3 ou mais em relação, amigos que se juntam, ou outras - tomassem emprestada a invisibilidade daqueles que vivem à margem da norma, essa grande arena iluminada pelo quotidiano e de fronteiras aguerridamente delineadas pelas instituições sociais. E assim toda a vida em conjunto continua a ser a tentativa de encaixe num padrão, custe a quem custar, e com o sacrifício frequente da própria relação ou de um dos seus elementos. Vão a uma sala gay num qualquer chat, metam conversa com homens casados e vão perceber o que eu quero dizer. O valor sociológico da informação que ali circula parece-me cada vez mais incalculável.
Imagem daqui

Actualização

Um dia tenho que repetir a experiência: deixar o Morrissey a apanhar chuva num ermo minhoto, e passar quatro dias maravilhosamente inúteis nas margens do Vouga, essa paisagem cada vez mais familiar e apaziguadora.

Sinto-me triste...

É triste, muito triste...

Any given friday


Às sextas-feiras sou um monstro com falta de assertividade. Mergulho numa euforia de programações que me deixam baralhado e sem capacidade de decisão. Jantares com amigos, jantares com um amigo ou uma amiga, noitadas dançantes, estágios campestres, caminhadas ou concertos em festivais de Verão (é mesmo verdade que o Morrissey vai actuar no mesmo dia que os Fischerspooner e os Broken Social Scene?). Tudo, tudo o que me faça esquecer que depois regresso ao emprego, e que me comprometi com um trabalho até ao dia 20. O tempo cavalga e eu imerso na sua poeira.

Águas nocturnas


Há uma música dos R.E.M. sobre tomar banho à noite em piscinas que me põe sempre melancólico (estar melancólico é não estar no presente, o que pode provocar sérias quebras no rendimento laboral). Fiz um link mental com essa canção quando uma amiga me recomendou esta imagem. A nostalgia é o maior portão da memória, que se abre, por exemplo, para Verões no Douro com guitarras acústicas e roupa interior molhada.

Surrealizar por aí

Atraído por um fétiche que não se racionaliza, abeirei-me à janela do meu local de trabalho para ver dois homens possantes de uniforme azul, ao lado de uma carrinha azul com cães de aspecto ameaçador a vociferar lá dentro. No ar, ainda um cheiro a queimado invadia os pulmões e a luz do Sol era eclipsada por uma coluna de fumo de um incêndio nos arredores da cidade. Pensei que um animal tinha sido atropelado, mas logo percebi um homem estendido na estrada, à frente do carro policial. Aproximei-me e acabei por ajudar a deslocá-lo para a berma, para o trânsito poder seguir e a ambulância poder chegar ao local. Segurei na cabeça do homem e reparei que a boca estava vermelha de sangue. Tinha tido um ataque epiléptico e mordera a língua. Uma mulher idosa abeirou-se com os olhos esbugalhados. Tinha encomendado ao rapaz um pagamento e pediu para verem se ele tinha os recibos com ele, não fosse o desgraçado morrer e ela ficar sem documentos para provar que era boa cidadã. No passeio, uma varina com o cesto do peixe à cabeça e toda envolta em panos pretos, apesar do calor sufocante, olhava para o segundo andar do prédio em frente, onde uma mulher abeirada à varanda a chamava com ar alarmado. Pensei que estivesse assustada e fosse perguntar o que se passava, mas era mesmo para saber qual era o peixe do dia. A interlocutora não se fez rogada e o negócio começou mesmo ali, com o homem estendido aos pés. O peixe, a bem dizer, não tinha um ar muito fresco.

Fogo

Quem estiver no Porto hoje sabe que se respira a custo, e que um dos horizontes, lá para os lados de Gondomar, está quase castanho de tanto fumo. O fogo regressa, com os seus aliados. O vento que faz bater as portas lá em casa e que enche todas as superfícies de cinzas é o mesmo inimigo dos bombeiros que, enquanto decidimos o que fazer com este Agosto, arriscam tudo para resolver o problema e tranquilizar a nossa consciência, essa sim, pouco dada a combustões.

O rugido do Leopardo


"É preciso que algo mude para que tudo fique na mesma", dizia Tancredi/Alain Delon ao Príncipe de Salina/Burt Lancaster. A civilização ocidental relembrava e sintetizava assim a sua lógica binária de dominantes e dominados, na voz de duas personagens emblemáticas, tornadas célebres pelo livro de Giuseppe Tomaso de Lampedusa e mais tarde no filme homónimo de Luchino Visconti. Em meados do século XIX, a península itálica era ainda um conjunto desagregado de pequenas nações. No reino da Sicília, uma aristocracia secular ao estilo feudal dispunha do poder e morria de tédio. Mas as coisas iam mudar, com a revolução de Garibaldi a aterrar na grande ilha. Vale a pena a leitura (ainda que na versão original, a que me atirei para exercitar a língua, me tenham escapado seguramente muitas subtilezas): pela entrega à sedução irresistível de um Leopardo no turbilhão da História, mas também pela viagem fascinante à aridez e riqueza da cultura siciliana.
Durante a procura de imagens sobre o filme, deparei com curiosidades suficientes que justificassem um post autónomo só sobre o Burt Lancaster. Já sabia que ele tinha sido um artista de circo e que não tinha qualquer tipo de formação como actor. Já quanto à sua presumida bissexualidade, quanto a mim, só parece acrescentar um charme adicional a uma figura que, pela combinação sui generis de masculinidade e sensibilidade que imprimia aos seus personagens, sempre figurou no meu panteão pessoal.

Já cá cantam!


Já comprámos os bilhetes!! Dia 30 de Outubro vamos ver o Chico cantar no Coliseu. Há quantos anos ele não dava um concerto em Portugal? ;)

Sarrabisco ao Sol


Venus com strombolicchio ao fundo. O areal é de um negro retinto, vulcânico. O mar transparente. Sob o seu abismo de dois mil metros contrastam pequenos peixes e algumas medusas.


Strombolicchio em primeiro plano. Um pequeno rochedo em frente a Stromboli, também de origem vulcânica, o mais antigo de todo o arquipélago das Eólicas. Antiga base militar, é actualmente o posto do faroleiro.

Mina de ilusões

Algumas pessoas chamaram-me a atenção para esta notícia. Não era novidade porque os repórteres tinham andado por lá a rondar nas instalações. Estive envolvido na fase inicial da criação desse projecto de apoio ao empreendedorismo, uma medida financiada por um programa europeu de promoção da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. Baptizámo-lo de MINA (sigla de Mulheres e Ideias, Negócios em Acção, por ser um nome feminino, mas também por evocar um espaço onde se podiam descobrir e trabalhar ideias com valor). Pessoalmente, sempre considerei a minha vinculação um grande erro de casting, dado que me solicitavam um optimismo e um sentido de visão das oportunidades de negócio que o meu cepticismo e pessimismo endémico me tolhia à partida. Claro que adoro ser contrariado pelas evidências, e nada disto impede que eu tire o meu chapéu às novas empresárias e à sua capacidade de iniciativa (apesar de tudo estas eram licenciadas e dispõem de vários tipos de retaguardas, ressalve-se). Mas que no mundo da intervenção comunitária e do desenvolvimento local (esse universo de boas intenções mas também de arrogâncias etnocêntricas e de cultosinhos de personalidade) anda muita gente sem os pés assentes na terra, lá isso anda. Não me parece que encher o mundo de mais ilusões, ainda que reluzentes e com bom ar, vá resolver a situação.

Agora eu já não era eu

Tinha cinco anos. Viajava com a mãe para Moçambique, num daqueles navios maiores do que o mundo. Ao atracar, os dois penduraram-se na amurada e olharam para o cais. A mãe, excitada, apontava para o pai, mas ele não conseguia distingui-lo na multidão de pontos minúsculos que se agitavam lá no fundo. O pai subiu a ponte que se instalara entretanto e segurou no filho pela primeira vez. A criança cresceu e tudo levou o seu rumo, como acontece por imposição do tempo. Agora é um adulto, e esteve comigo para me dizer que tudo o que lhe tinha acontecido até aquele dia em que completou cinco anos tinha desaparecido da sua memória, como se a própria existência ali tivesse iniciado. Às vezes o passado pesa muito. Era bom, nessas alturas, poder guardá-lo nalgum sítio e começar tudo do princípio, assim como naquele longínquo cais africano.





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