As minhas cidades - Torino


Não são muitas as minhas cidades de eleição, mas Turim faz parte desse pequeno ramalhete, presumo que para sempre. Para mim está indissoluvelmente imbricada na recordação do período que lá vivi. Foram 10 meses de uma mistura poderosa entre fuga e procura. A cidade acolheu-me, distante, indiferente ao meu deambular sorumbático e perdido. Do alto da sua arquitectura do novecento, parecia apenas trair a sua austeridade em exuberantes pormenores arte nova ou na imponência dos palácios reais, que revelavam a escolha de primeira capital do país, ainda antes de Roma. Alguns recantos convidavam, contudo, a ficar: a Piazza Carignano, em frente ao teatro que lhe deu o nome, ou a Via Garibaldi, com as suas intermináveis bancadas de livros em segunda mão. Hoje invade-me um gozo secreto saber que se deslocam à cidade pessoas vindas dos quatro cantos do mundo apenas para vislumbrar o chamado santo sudário, o famoso trapo com a suposta cara estampada do messias cristão, nas raras ocasiões em que é exposto publicamente. Depois, é a cidade dos jardins, especialmente o interminável Parco Valentino; dos deliciosos gelados, que se comem todo o ano (mesmo quando neva, especialmente os do Fiorio, na cosmopolita Via Po; ou da gigantesca Molle Antoneliana, hoje museu do cinema. O grandioso passado cinematográfico respira-se em cada esquina: nas enormes salas de cinema, nos festivais internacionalmente reconhecidos (incluindo o das mulheres, o da juventude e, claro está, o gay e lésbico), ou nas lojas de posters de todas as épocas.
Com o tempo percebi que o calor da cidade devia procurá-lo dentro daquelas espessas paredes: nos cortile, pátios interiores onde se guardam as bicicletas e se espreita para a varanda dos vizinhos; nos antigos apartamentos, outrora residências aristocráticas, hoje divididas e arrendadas separadamente, com os seus velhos mas eficazes sistemas de riscaldamento; nas caves, onde se escondiam bares acolhedores como o Procope, onde se assistia ao melhor de jazz de vanguarda europeia. Depois, há o baloon, a fabulosa feira semanal, com os seus odores magrebinos e as preciosas velharias a forrar literalmente a parte leste da cidade; os murazzi, junto ao rio Po, por onde terão passeado Calvino, Primo Lévi ou Umberto Eco, à procura de inspiração; a omnipresença, por vezes opressiva, dos Alpes, que se vêem ao fundo de cada rua; a auréloa de cidade maldita, simbolizada numa gigantesca estátua de pedra negra, um dos vértices de um suposto triângulo satânico.
Refugiado na minha minúscula mansarda, onde o fumo dos cigarros e o próprio pensamento esbarrava no tecto baixo, deixei-me vencer pela cidade, e acabei por voltar para o Porto. Mas já trazia comigo o que procurava: a vontade irreprimível de saber o que o futuro me reservava.

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