Bola de espelhos

No terceiro dia dedicado ao meu conto de Verão, continuo sem entabular conversa com uma única alma neste idílio veraneio minhoto (se exceptuar as condensadas conversas e mensagens de telemóvel). O solilóquio interior em que aterro, ao passear numa praia estranhamente deserta, desfia uma linha de pensamentos completamente livre: da Guerra dos Mundos, dum Spielberg em estado enérgico e negro, que vi ontem num cinema de Viana do Castelo, salto para o Ensaio sobre a Cegueira (a cena do assalto da multidão ao carro no filme fez-me lembrar o ambiente apocalíptico criado pelo Saramago) ou para uma recordação literária mais remota - A Peste, do Camus.
Mergulho cada vez mais na melancolia de quem não comunica. No trabalho que estou a tentar terminar, sugiro a frágil metáfora da bola de espelhos para tratar do tema da identidade. Essa mesmo, a filha do Disco Sound, que podemos encontrar tanto na mais recôndita festa de aldeia como na mais sofisticada discoteca de um metrópole europeia. A ideia é traduzir o jogo entre o que somos ou julgamos ser e o que os outros vêm em nós, ou antes, a encenação entre uma narrativa interior e uma outra pública, sabendo à partida que nem sempre a segunda corresponde à primeira, influenciando a consolidação da auto-imagem. Em última análise (porque neste planeta já não é possível ser Robinson Crusoe), não existimos sem esse reflexo, tal como a bola de espelhos aparenta sempre algo, mesmo sem os vary-lights a circular à sua volta. No silêncio da tarde, ainda que esquecida num sótão à espera da próxima festa de garagem, ela não deixa nunca de ser o que é: uma imagem do que a rodeia, em permanente mutação.

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