Ana da Silva


A minha avó, lá para o fim da vida, era uma pessoa minúscula de tanto a vida a ter mingado. Não me recordo de grandes efusividades na nossa relação. Foi a única avó que conheci e ela parecia mais preocupada em continuar a ser mãe, chegando a designar de crianças os seus próprios filhos, mesmo quando estes já tinham problemas acentuados de calvície e estavam na recta final da carreira profissional. Exceptuando um intervalo de meia dúzia de anos da sua juventude, passados em Lisboa como custureira deslumbrada com o teatro de revista e onde se casou pela primeira de duas vezes, passou os seus dias neste mundo acompanhada pela filha, minha madrinha, uma solteira que lhe dedicara a vida e que a consumira com essa dedicação, na bracara augusta, essa cidade dos sinos repicados cada quarto de hora e de muitas e duvidosas beatices. Recordo-a como uma pessoa um pouco fria e distante, como talvez muitas mulheres da sua geração. Nunca me esquecerei da segurança com que degolava as galinhas, deixando-as por vezes numa correria tresloucada a espichar sangue pelo linóleo da cozinha; ou da habilidade com que elaborava pequenas bonecas de pano ou de conchas do mar, depois vendidas numa daquelas delirantes montras que só existem no Minho, com a mesma dedicação com que assinava o nome sem maiúsculas ou que lia em voz alta o jornal ou as legendas dos filmes nas matinés televisivas. Quando vinha a minha casa, a asma arrastava-a durante pelo menos meia hora pelas escadas acima, e gostava de inventar que existiam lobos e raposas na quinta que ficava em frente, já na altura o único espaço verde de toda a cidade (fui na cantiga até uma idade vergonhosa). Para a visitar, tínhamos que passar pela frutaria na entrada do prédio antigo gerida pela Dona Chêpa, figura popular alvo do desdém da minha tia dada a devaneios aristocráticos. Em casa, gostava de pisar com passos vigorosos o soalho de madeira secular, provocando a vibração de todo o edifício e fazendo tilintar as pequenas figuras de cristal cuidadosamente expostas sobre os naperons bordados, por cima de grandes baús ou ao lado de santuários protegidos por grandes abóbadas de vidro. Comíamos um grande assado ou um sarrabulho, e olhávamos para a rua da varanda lá do alto, com uma vista previlegiada sobre as grandes procissões de Páscoa (como é de bom mote num lar minhoto). Nunca saíamos de lá sem uma grande encomenda de frigideiras, compradas na casa de origem e uma reserva de guloseimas que servia quase à justa até à visita seguinte. Ia com ela ao mercado e pedia-lhe para passar pela Igreja para ouvir o carrilhão. Quando ficava lá, dormíamos todos no mesmo quarto e às vezes a meio da noite ouvia-se o barulho metálico de líquido no penico que escondia debaixo da cama. Depois a cidade cresceu e eu percebi que a minha avó já não pertencia àquele tempo. Quando eu era pequenino, ela era grande. Depois trocámos. Tinha o projecto secreto de apontar os ditos e as lenga-lengas populares, que ela sabia e repetia às mãos-cheias, mas antes de partir a asma cortou-lhe a voz.

3 Comentários:

  1. Anónimo disse...
    Muito bonita esta história...
    maria disse...
    Gostei. Pela limpidez da linguagem, pela sensibilidade, pela lucidez com que se incorpora a história na nossa história. Terno sem ser lamechas.
    SIPO disse...
    as grandes matriarcas dos nossos tempos. Não aponto as lenga-lengas da minha avó, mas tb tenho um projecto "secreto" de contar a sua vida com recortes de fotografias...
    gostei deste post

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