A trágica epistemologia do homem-urso


Um homem isola-se durante 13 períodos estivais no coração de uma paisagem selvagem e inóspita, a que chama o santuário dos ursos, apenas com uma tenda de campismo e os recursos básicos necessários. Mas não são uns ursos quaisquer. Trata-te dos grizzly, conhecidos pela sua agressividade e natureza indómita. Ainda assim, decide desafiar todas as convenções e aventura-se num minúsculo acampamento sem armas, munido apenas de uma câmara de filmar, com a qual vai encetando monólogos no mínimo heterodoxos sobre o que observa mas também considerações mais pessoais. Werner Herzog, o fascinante cineasta que na sua extensa filmografia já nos presenteou com "Fitzcarraldo" ou "The dar glow of the mountains", conhecedor dos abismos e limites da alma humana e da sua nem sempre pacífica convivência com a natureza, apropria-se do material filmado por Timothy Treadwell, o homem que acabaria por perder a vida, juntamente com a namorada, devorado por um dos ursos que tanto idolatrava (existe um registo áudio da tragédia, que funciona como elemento narrativo de suspense mas ao qual somos felizmente poupados) e cria The Grizzly Man. De uma forma inteligente, Herzog vai dissecando o acontecimento, analisando documentos, datas, factos e entrevistando pessoas que conviveram com o malogrado explorador. Conclui que, muito para além do que um manifesto de defesa pelos ursos (que, como atesta um especialista da área, até possuem uma população estabilizada naquela zona e para mais habitam numa área protegida), contestado pelos próprios nativos, que sempre respeitaram a distância entre ursos e humanos, o projecto não era mais do que a desesperada luta de um homem à procura de sentidos na sua própria vida (conhecemos ao longo do filme o seu percurso prévio de expectativas não cumpridas, empregos desqualificados, frustrações e alcoolismo, sem uma única referência a estudos de biologia). O final parece sugerir uma espécie de imolação, como se o homem, no limite de uma ecologia pessoal, delirante e ingénua, se tivesse entregue finalmente não à sua desintegração, mas à sua mutação identitária: já não era um homem, mas um homem-urso, apenas mais um elemento natural daquela paisagem, a única a que chamava casa. Apesar das divergências com a missão de Treadwell (Herzog nunca acreditou num fundo 'humano', alla Disney, no reino animal) este belíssimo documentário resgata-o e devolve-lhe a possibilidade de um sentido.

1 Comentário:

  1. Major Tom disse...
    desconhecia a faceta de actor. quantos aos filmes, eu espectador me confesso ;-)

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